Seleção brasileira: crônica de um espelho embaçado
Só bola de cristal pode cravar se um técnico estrangeiro conseguirá empreender o reencontro do Brasil com o Brasil, no gramado e no imaginário
A rodada das seleções atestou o fosso da Canarinho em relação aos seus pares e ao imaginário. Nada indica que tende a regredir logo.
Culturalmente associado a uma soberania artística, o escrete verde-amarelo consolidou seu prestígio histórico graças não só aos cinco canecos, os três primeiros na conta de uma rara sucessão de bambas. Fixou-se no imaginário global pela caligrafia dionisíaca.
O time batido por Marrocos, sábado passado, era o avesso do dionisíaco. Burocrático igual carimbo de repartição. Difícil imaginar algo diferente, diante do enxame de volantes.
Pior não foi a previsível derrota (2 a 1 saiu barato). Pior é a seca prolongada de armadores. Raphael Veiga, único da categoria entre os convocados pelo interino Ramon Meneezs, deixou o banco só em meados do segundo tempo.
A estiagem distancia o Brasil tanto da renovação desejável, para a qual é insuficiente o aporte de jovens bons de bola, quanto do tradicional pendor à beleza. Uma vocação que desbota no retrovisor.
O estio de armadores condiciona o sucesso a lampejos de prodígios como Vini Jr. e Rodrygo. Até ganhamos assim uma Copa, em 1994, talvez a mais insossa. Tínhamos, todavia, Bebeto e Romário. Tínhamos Jorginho, Leonardo, Branco. Aposentamos o molde desses laterais?
O rejuvenescimento canarinho, inadiável depois dos fiascos em três Mundiais seguidos, depende do reencontro com um estilo consagrado no gramado, na resenha, na memória, retrato da nossa identidade cultural. Toques envolventes, dribles, tabelas, a capacidade de surpreender defesas, arquibancadas, predições. Estilo para o qual continuam imprescindíveis meias cerebrais e laterais insinuantes.
Só bola de cristal pode cravar se um técnico estrangeiro desejará ou conseguirá reavê-lo e ajustá-lo à competitividade contemporânea. Só os paranormais podem prever se tal rima, uma vez alcançada, quebraria o jejum de títulos. Mas reaproximaria o Brasil do Brasil.
Ao afastar-se do encanto – e do próprio quintal, menosprezado em meio ao êxodo de talentos –, a seleção desidrata o seu papel sociocultural, a sua força mitológica, a sua densidade esportiva. Definha no campo e no coração do torcedor.
A atrofia afetiva ecoa no silêncio sobre a derrota para os marroquinos. O amistoso não despertou um pio sequer nos bares, praças, escritórios, nenhum cantinho nas prosas ocupadas com a decisão do Carioca.
Silêncio retumbante até para o joguinho chinfrim, laboratório do recomeço. Um silêncio estéril. Sintoma não de uma ressaca crônica pela decepção no Catar, e sim da perda gradual de identificação que enferruja relacionamentos. O silêncio indiferente da página virada.
O desinteresse expressaria também impactos do mundo globalizado na representação nacionalista do nosso futebol, símbolo do país idealizado: inventivo, moderno, irresistível. Um fenômeno sobre o qual se debruçaram pesquisadores como Ronaldo Helal, Antônio Jorge Soares, Cesar Gordon e Simoni Guedes, craques das ciências sociais.
O espelho pode até não ter se quebrado. Mas caminha embaçado.
__________
Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.