O que Garrincha diria da nova etiqueta nos gramados?
Alma dionisíaca, apelaria aos cartolas: punam não as firulas, sem as quais o futebol ficaria menos alegre, e sim a violência, a corrupção, o racismo

Das estrelas, chega a cartinha:
Prezados cartolas,
Desculpem se me engano. Não podemos mais pisar – propositalmente – na bola, rabiscar uma graça? Firula agora virou crime? Perdoem a perplexidade de um réu confesso. Coisa de quem cresceu brincando descalço na terra.
Minhas pernas travessas seriam condenadas. Sistematicamente condenadas. Desacatariam a etiqueta pelo instinto lúdico, não por maldade. Nenhuma camisa de força conseguiria domá-las. Talvez noutra encarnação.
Compliance, como dizem hoje, nunca foi meu forte. Mas desconfio: a nova regra rosna por nada.
Desobedientes recebem cartão, adversários ganham cobrança de falta. Assim vocês esperam evitar desavenças, manter o respeito em campo? Ora, sabemos que o desrespeito deita raízes mais profundas.
Minhas pernas arteiras teriam colecionado cartões. Dionisíacas por natureza, morreriam sem entender o castigo.
Os anjos as abençoaram com alma passarinha. Voam inebriantes como uma melodia que invade o salão e faz até o tímido dançar.
Peço que as poupem de uma palmatória retroativa. Não zombavam por malícia. Só queriam brincar, leves igual uma ciranda.
Muita molecada nasce com o mesmo apetite, a musicalidade nas pernas entrelaçada à arte, ao sonho, ao sorriso. Modéstia à parte, sorriso popular é minha especialidade.
Sem os pés traquinas que brotam nas praças, várzeas, periferias, que reluzem despretensiosamente nas quadras e ruas empoeiradas de um Brasil invisível, perderíamos alegria. Mutilaríamos a genética e a graça do futebol. Desbotaríamos nossa identidade cultural. A bola, coitada, choraria baixinho o choro do abandono.
Pensem nessa moçada, eu voz rogo. Daqui a pouco vão achar errado o lençol, a caneta, a embaixadinha, todas as picardias que entortam a marcação e levantam a galera. O diacho do mundo, assombrado já por tanta estupidez, tanta aspereza, ficaria pior.
Por que não miram as ameaças verdadeiras? Permanecem aí desde as primeiras peladas em Pau Grande, lá se vão 80 anos. Não me refiro aos perebas. Falo, é lógico, de corrupção, patrimonialismo, racismo.
Em vez da firula, da galhofa, deveriam erradicar os ataques racistas perpetuados pela mentalidade escravocrata. Neles haveriam de aplicar um rigor proporcional à crueldade refletida nos estádios.
Sou fortemente solidário ao desabafo indignado do jovem Luighi: “Ninguém vai fazer nada?”. O apelo do atacante palmeirense, ofendido por torcedores na Libertadores Sub-20, deu em pizza. Teve de se contentar com multa e repreensão protocolares aos opressores.
A urgência de corrigirmos as prioridades ecoa na surpresa do rapaz com a pergunta do repórter sobre o jogo, não sobre o racismo que sofrera. “É sério?”, retrucou Luighi, incrédulo perante a cegueira.
Está na hora de vestir a carapuça e virar o jogo, abraçar as mudanças genuinamente prioritárias. Ou só restará o lamento resignado: barões manobram para deixar tudo como está.
Eu me despeço com um conselho matuto: levem-se menos a sério e conservem a leveza do futebol. Relevem as gaiatices, punam a violência. As pernas arteiras agradecem.
Afetuosamente,
Mané
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.