Na cadência do apito inquieto do replay
Excesso de intervenções do tira-teima eletrônico e de reclamações dos jogadores ameaçam a fluidez sem a qual o futebol deixa de ser o que é
A sabedoria popular ensina: juiz bom não é notado. Embora imperfeita, a velha máxima afina-se à realidade. Convém ouvi-la.
Amolar o juiz, culpá-lo por todos os males, é sagrado para o torcedor. Jamais deixará a liturgia do futebol. Mas há algo errado quando as prosas ocupam-se menos do jogo que do apito.
Fim de semana passado o VAR ofuscou a cadência de dois confrontos. No sábado, torcedores do Santos e do Ceará reprovaram as interferências do replay. O gol mal anulado e a expulsão exagerada esfriaram o duelo na Vila.
Dia seguinte Fluminense e Fortaleza provaram dose semelhante. O preciosismo do vídeo invalidou (indiretamente) um gol de cada lado, como se não bastasse ao futebol o castigo do campo pesado e da pouca inspiração.
Os casos atestam a inclinação intervencionista do nosso VAR. Contraria a proposta original e o papel coadjuvante.
Germinado por décadas, o tira-teima eletrônico nasceu para corrigir o erro crasso num lance capital. Se trai o compromisso seletivo, atravanca o jogo. A Europa logo entendeu isso.
Por aqui a cabine não raramente sequestra o protagonismo alheio. Não só do juiz e dos bandeirinhas, mas também dos dribles, tabelas, arrancadas, arremates.
Interferências excessivas – eventualmente equivocadas – engessam a dinâmica sem a qual o futebol não seria o que é. Sem a qual não teria se tornado o espetáculo midiático mais consumido no planeta.
A qualificação dos campeonatos nacionais, e sua ambicionada carreira global, exige mais do que o amadurecimento político-administrativo inspirado nas principais ligas estrangeiras. Requer também um aperfeiçoamento da arbitragem.
O avanço envolve uma consciência sobre funções e prioridades. O brilho emana dos atores, do público, não do contra-regra.
Primordial ao show, a fluidez deve ser resguardada pelos profissionais na órbita da partida – repórteres, narradores, gandulas, árbitros, treinadores, atletas. O apito por vezes inquieto do VAR e a zanga cativa de jogadores fazem o contrário.
Partidas sem enxames de reclamações em torno do juiz beiram o milagre. Eis mais uma diferença substantiva em relação às pelejas dos primos ricos europeus.
Ali todos deixam a bola rolar. Simples assim. Não chiam a cada marcação divergente, tampouco escalam o desrespeito. Seja porque compreendem a importância prioritária da fluidez para a qualidade do espetáculo. Seja por educação. Um dia chegamos lá.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.