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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Maracanã na fila do imunizante

Espírito empreendedor de Mário Filho deveria inspirar horizonte à altura do gabarito sociocultural e histórico do estádio sob a mira de uma mudança de nome

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Atualizado em 8 fev 2021, 11h22 - Publicado em 6 fev 2021, 08h58

Algumas ideias volta e meia se candidatam a dourar o capital simbólico do Maracanã. Outras tantas miram o desafio de torná-lo uma fonte de receita compatível à fama internacional, ao peso histórico, à vocação épica. A mudança de nome sugerida pelo deputado André Ceciliano não parece uma delas.

O presidente reeleito da Alerj propõe trocar o homenageado. Sai Mário Filho, deslocado para o batismo do complexo esportivo. Entra o Rei Pelé. O estádio viraria xará do primo alagoano.

A grita nas arquibancadas online não desvia o curso programado. O parlamentar pretende levar a proposta a plenário. Foi protocolada quarta-feira passada, quando o país beirava 230 mil mortes pela pandemia e idosos vacinados comemoravam o início do fim.

O colega Marcos Muller oficializou na mesma fornada outra contribuição ao esporte fluminense: o Dia do Cavalo Montado. “Os amantes de cavalos de todo o Estado terão assim uma data para comemorar o seu amor pelos cavalos”, justifica Muller no Projeto de Lei 3541/2021.

A sugerida celebração dos esportes equestres no calendário do Rio contemplaria atividades que geram 3,2 milhões de empregos, argumenta o deputado. Num mercado ainda mais rico encaixa-se a proposta de Ceciliano. Mas é improvável que, se aprovada pelos pares legislativos, reforce o cacife socioeconômico do Maracanã ou da nossa indústria esportiva.

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Sem menosprezar a projeção global do rei, tampouco a boa intenção da homenagem, a troca de nome não integraria os deveres de casa para anabolizar o tônus turístico, histórico, social, financeiro do Maracanã. Também não agregaria reconhecimento original à majestade consagrada pelos três títulos mundiais, pelas jogadas desconcertantes, pela genialidade acima dos gols, das glórias, dos números prodigiosos. Uma majestade há muito tatuada no imaginário coletivo, já reverenciada de múltiplas maneiras: placas, filmes, músicas, textos, deferências orais e escritas.

Pelé fez do Maraca o seu quintal. Ali foi coroado pela pena profética de Nelson Rodrigues. Encantado com os quatro gol e outras maravilhas do garoto de 17 anos na vitória de 5 a 3 do Santos sobre o América, pelo Rio-São Paulo de 1958, o cronista proclamou: “O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”.

Assim como Garrincha, Zagallo e Didi – autor do primeiro gol no Maracanã, em 16 de junho de 1950, num amistoso entre cariocas e paulistas (3 a 1 para os visitantes) –, assim como Zico, Rivelino, Roberto, Romário e outros bambas, Pelé tem obviamente lugar cativo no templo da bola. Dispensa inscrições formais. Eternizou-se na grama e nas retinas abençoadas por antologias como o golaço sobre o Fluminense, depois de driblar quase o time inteiro, e o milésimo gol, sobre o Vasco de Andrada. As cenas daquela noite de 1969 atravessam gerações.

Três anos antes, Mário Filho era fulminado por um ataque cardíaco. Não haveria melhor forma de homenageá-lo senão batizar o estádio com o nome do jornalista, escritor e empresário sem o qual “o maior do mundo” dificilmente teria nascido. Não haveria escolha mais apropriada.

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Com a batuta do Jornal dos Sports, do qual era dono, Mário Filho conquistou o apoio da opinião pública ao ousado empreendimento. Começaria a ser construído em 1948, no terreno ocioso do Derby Club, fronteira da Tijuca com o Centro.

O Rio, então capital da República, ergueria o totem de um Brasil idealizado sob a influência intelectual de Gilberto Freyre. Um país pujante pela miscigenação, espelhado num futebol inventivo, dionisíaco, vetor da sonhada democratização racial. Leônidas, o Diamante Negro, craque da Copa de 38, personificava esse discurso encampado pela imprensa e pelos governantes. O novo estádio era o emblema que faltava.

Obras no Maracanã
Construção do Maracanã: de 1948 a 1950 (Internet/Divulgação)

Mais que símbolos da ascensão do “país do futebol”, o Maracanã e a ambicionada conquista da Copa de 50 legitimariam a partitura ideológica e política inspirada na percepção freyreana da gênese sociocultural brasileira. Mário transbordava essa narrativa nos escritos, nas resenhas, nos variados incentivos ao esporte. Não à toa, escalou Freyre para o prefácio de “O negro no futebol brasileiro”, publicado originalmente em 1947 e revisado em 1964.

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Mesmo destituído de rigor científico, o clássico avaliza Mário Filho como um dos maiores personagens do nosso universo futebolístico. Descontados os relatos romanceados, o livro traça um panorama historiográfico da popularização e profissionalização do futebol carioca.

Embaixador da nação projetada, o futebol reluzia o sonho da integração nacional, racial. A escola brasileira, culturalmente associada à ginga, ao improviso, representava a autenticidade de um país cuja força brotava da mestiçagem. O Maracanã viria materializar essa identidade em formação.

Sem a aguerrida campanha de Mário Filho, nem o nosso futebol nem o seu principal palco caminhariam conforme encontramos. Sem a persuasão dos artigos publicados no diário esportivo, provavelmente teria prevalecido a corrente liderada pelo também jornalista e vereador Carlos Lacerda. Defendia uma construção longe do Centro, em Jacarepaguá, para 60 mil espectadores, em vez do colosso com mais de 150 mil lugares próximo ao rio que corta a Tijuca. O rio Maracanã emprestaria o nome tanto ao estádio quanto à região em torno dele. Um batismo para a eternidade.

Autor de seis livros e incontáveis crônicas sobre o mundo da bola, Mário Filho legou muito mais do que o lobby decisivo ao Maraca. Popularizou a cobertura esportiva, com abordagens mais coloquiais e aprofundadas. Ajudou a converter o futebol num vasto fenômeno social e midiático; num entretenimento de massa entrelaçado à cultura brasileira; num catalisador dos nossos anseios, orgulhos, contradições; numa inesgotável fábrica mística.

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Partiram de Mário iniciativas como o Torneio Rio-São Paulo, semente do campeonato nacional, e a lendária competição de peladas no Aterro. Craque do marketing, criou a etiqueta “Fla-Flu” para promover o clássico. De tão popular, a expressão virou sinônimo de grandes duelos noutras áreas.

O apetite empreendedor expandiu a dimensão do futebol, suas teatralidades, suas paixões, seus holofotes, sua química carnavalesca entre o campo e a arquibancada. Era um “criador de multidões”, resumiu o irmão Nelson Rodrigues. Noutra tirada, o dramaturgo sacramentou: “Mário Filho foi tão grande que deveria ser enterrado no Maracanã”. Não seria exagero.

Todas essas marcas perpetuam-se no Maracanã. Sobreviveram aos descasos que o assombram, às inépcias administrativas, ao processo de elitização. Não lhes configura ameaça uma eventual mudança no nome do estádio, cuja relevância concorre com a reclassificação etária de “O príncipe de Nova York”, também formalizada em Diário Oficial desta semana (às vésperas de uma continuação, o antigo sucesso de Eddie Murphy, de 1988, passa a  “não recomendado para menores de 14 anos”).

Quica à frente do poder público, dos clubes, dos potenciais investidores, a necessidade de equacionar para o Maracanã um horizonte à altura da sua história e das suas histórias, do seu gabarito socioeconômico, do R$ 1,2 bilhão gasto na reforma para a Copa de 2014. Um horizonte à altura do próprio Mário Filho.

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Preso a emaranhados políticos e financeiros há pelo menos duas décadas, o estádio é provisoriamente gerido, desde 2019, por Flamengo e Fluminense. Mesmo antes da ausência de público exigida pela crise sanitária, suavam para torná-lo lucrativo, ao menos não deficitário, diante do custo fixo mensal na casa dos R$ 2 milhões e de despesas operacionais superiores a R$ 400 mil.

A dupla passará o bastão ao vencedor da licitação prevista pelo governo estadual para abril. A nova concessão valerá por 35 anos, tempo suficiente para o retorno aos investimentos que dotariam o complexo esportivo de produtos, serviços e conveniências capazes de diversificar e melhorar as experiências oferecidas. Capazes, portanto, de potencializar suas receitas.

Inspirações não faltam. Estádios como os do Arsenal, Manchester United, Real Madrid e Barcelona faturam, em condições normais, entre 80 e 100 milhões de dólares por ano, algo perto de meio bilhão de reais. Impulsionados pela vitalidade econômica e esportiva do futebol europeu, e pelo amadurecimento gerencial, consolidaram-se como atrações turísticas. Na linha dos parques temáticos, efetivaram-se fontes de momentos inesquecíveis além dos jogos, provedores da memória afetiva. Gigantes do consumo.

Aos 70 anos, o Maraca tem lastro para entrar no time. Não sem uma gestão especializada e um plano de negócios alinhado às suas características, principalmente culturais, e à cidade. Enquanto isso, não custa tentar imunizá-lo contra caneladas políticas.      

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

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