Lembranças de uma bola feita de sorriso, de infância, de inclusão
Foto da Deite de Leite propagada nas redes desperta conexões com o tempo da fantasia, onde permanecemos criança e aliviamos o peso do mundo
Ela cultiva a universalidade dos contos de fada. É feita tanto de borracha quanto de sorriso, de infância, de pequenas grandes histórias. Unanimidade.
A foto propagada pela internet desperta uma doce nostalgia inclusive nos que, por azar, jamais a chutaram. Não um chute qualquer. Nela até os pernas de pau disparam uma bomba venenosa, sinuosa, barroca.
“Trajetória imprevisível, terror dos goleiros. Volta e meia a Dente de Leite acabava no telhado vizinho. Foi precursora da Jabulani”, compara o boleiro na resenha com ex-colegas de mestrado. Refere-se à pelota adotada na Copa da África do Sul (2010), famosa pelo ziguezague.
“Era o par perfeito do Kichute amarrado na canela. Uma dupla formidável, tipo Pelé e Coutinho”, acrescenta um amigo.
“Alegria dos campinhos de terra”, emenda outro.
“Que nada. Jogávamos descalços, dedão no asfalto”, retruca o fominha criado nos melhores dias do subúrbio. Fala com a autoridade de quem devota filiação ancestral ao universo do futebol.
A lembrança não abriga dor de órfão. Expressa, pelo contrário, a gratidão solar dos meninos e meninas que cresceram lambuzados pela bola de estimação.
A genuína Dente de Leite formou gerações de peladeiros. Na praça, no play, no barro, no cimento, na areia. Folia dos pés descalços, de kichute, de conga. Pés que a resgatavam debaixo do carro, do quintal alheio, do matagal, ou do cão à espreita louco para devorá-la.
Aquela bola dionisíaca assombrava as vidraças e os deveres de casa, sucessivamente derrotados pelo chamado do quique. A Dente de Leite era o mirabel das peladas.
Merecia virar gibi. A aparência espartana camuflava superpoderes. Vencia a chuva, o chão abrasivo, as leis da física. Ficava perfeita no aguaceiro, igual Senna.
Alma de bombril, topava a parada que viesse: linha de passe, embaixadinha, bobinho, gol a gol, queimado, garrafão. Frequentava com a mesma desenvoltura rodas de vôlei na rua, na piscina, no mar. Herdara a simplicidade brejeira das antepassadas feitas de meia.
Sua imagem faz sucesso na internet não só porque representa o apetite artístico da molecada atrás de uma caneta, um lençol, um drible impossível. Não só porque ativa o imaginário em que chuteiras endiabradas, nascidas nas esquinas, simbolizam um Brasil idealizado.
Faz sucesso porque lembra a graça das coisas simples, e nos conecta ao tempo da leveza, da fantasia, da inclusão. Ali permanecemos criança e aliviamos o peso do mundo. Tempo onde a despretensão pedagógica da brincadeira esfria a cuca, aquece os sonhos.
Em todos os tempos, ainda não inventaram brinquedo melhor do que uma bola. A danada da bola continua irresistível também na memória.
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Capital do breaking
O Rio vira a capital do breaking no início de dezembro. Craques de 30 países decidem, dia 7, a etapa mundial do Red Bull BC One, maior disputa global de Breaking 1×1. Embalada com o show de Marcelo D2, a finalíssima inclui b-boys e b-girls brasileiros, como Leony, Maia, Samuka, Mini Japa.
O tempero verde-amarelo também salga, entre os dias 4 e 6, na Fundição Progresso (Centro), o Red Bull BC One Camp Rio. Neste aquecimento para o tira-teima decisivo, passinho, capoeira e samba incrementam a imersão na cultura do breaking e do hip hop. A programação, gratuita, reúne, por exemplo, oficinas de danças e batalhas de exibição.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.