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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Futebol intoxicado pela síndrome da reclamação compulsória

No compasso da intransigência que contamina as redes, atletas, técnicos e torcedores beiram o ataque de nervos diante de qualquer contrariedade

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Atualizado em 21 ago 2023, 07h29 - Publicado em 20 ago 2023, 12h15

Os tempos ásperos diluem fronteiras entre o espírito crítico – indispensável aos avanços sociais, científicos, democráticos – e o pendor bélico, como se andássemos encapsulados numa interminável rinha de galo. Milícias digitais bombardeiam alvos fabricados em todo o canto. Mutilam a sensatez, o respeito, o consenso. Viramos todos genis e pedras de plantão.

A metralhadora desmedida atinge o futebol. Convém não confundi-la com as excitações e provocações inerentes ao mundo da bola, tampouco com o direito ao protesto consagrado na arquibancada.

A radiação belicosa avança três ou quatro degraus acima. Contamina torcidas, atletas, treinadores, dirigentes.

Sua face mais drástica corresponde ao acirramento das violências materiais e simbólicas. Estendem-se das ofensas preconceituosas em estádios, anistiadas pela complacência, à pancadaria entre torcedores para os quais a barbárie excita tanto quanto o gol.

A urgência de erradicá-las impõe amadurecimentos fiscalizadores, punitivos e, sobretudo, educacionais. Aplicar sanções financeiras e esportivas rigorosas configura-se um dos caminhos irreversíveis à inadiável mudança.

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De forma menos selvagem, a síndrome do galo de briga se reflete numa espiral de reclamações. Daria inveja à lamuriosa hiena Hardy, personagem dos quadrinhos famoso pelo bordão “ó vida, ó azar”.

Reclama-se automaticamente de quase tudo, quase o tempo todo. Reclama-se dos titulares e dos reservas, do treinador antigo e do novo, das chegadas e das partidas, da tática ofensiva e da retranca, dos cartolas de ontem e de hoje.

Reclama-se das regras alteradas e mantidas, da grama natural e sintética. Reclama-se do gandula, do mascote, do quero-quero rasante. Reclama-se até do replay e da computação gráfica.

Reclama-se, claro, do juiz, velho ladrão de esperanças. O VAR não o livrou do erro gritante e das vaias. Pelo contrário. Nunca se espinafrou tanto nosso culpado de estimação.

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Outrora concentrada na galera, a ira contra a arbitragem expande-se numa infinita chiadeira de atletas e técnicos. Sem subestimar as barbeiragens do apito, algumas vergonhosas, as broncas mostram-se frequentemente infundadas, exageradas, grosseiras.

Os recordistas de malcriações superam-se a cada rodada. Nem as advertências e expulsões, nem os apelos de colegas e assessores contêm seus excessos. Escudados por méritos esportivos, traem a compostura do cargo e da representação exercidos.

Diante de qualquer contrariedade, bradam igual criança mimada sem o brinquedo da ora. Seus ataques de nervos extrapolam os rompantes inevitáveis num território encharcado de paixões. Naturalizá-los sob a maquiagem do folclore futebolístico constitui um equívoco tosco.

A atmosfera pesada sabota a gentileza, o contraditório, a escala de valores e prioridades. Derrotas logo adquirem o peso de vexame, como se equivalessem à fome que assola 20 milhões de brasileiros, à morte de crianças na guerra urbana, aos abusos sobre mulheres, pretos, homossexuais, indígenas, à roubalheira nos escaninhos do poder.

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Tal miopia desencadeia uma constante caça a bruxas e bodes expiatórios. Várias vezes ganha a companhia de explicações mirabolantes. Algumas beiram o surrealismo, outras afinam-se a teorias da conspiração. Muitas subvertem a primazia do jogo.

Por mais que, digamos, entreveros nos bastidores influenciem o campo, não se pode descartar o óbvio. Um time perde, em geral, porque jogou pior ou foi menos eficiente do que o adversário, não por força soberana de distúrbios externos, capricho divino, complô do sistema. Simples assim.

Embora equipes ricas sejam mais competitivas, e delas se espere uma primavera de troféus proporcional ao poderio econômico e esportivo, seria demasiadamente ingênuo ou pretencioso cravar sucessos. Aqui e ali o pacto entre o futebol e o imponderável derruba essa lógica. Já deveríamos ter aprendido.

Ao enxugar o choro pelo inesperado adeus da encantadora seleção no Mundial de 1982, Drummond ponderou pedagógico: “Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? (…) A Itália não tinha a obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico”. O poeta põe a bola no chão.

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Um trecho adiante da antológica crônica “Perder, ganhar, viver”, publicada no Jornal do Brasil (7/7/1982), libertava a rapaziada do choque coletivo: “Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi uma experiência, como tantas outras, de volubilidade das coisas”. Mais atual, impossível.

A rasteira no favoritismo não caracteriza necessariamente uma zebra, muito menos um apocalipse. Até porque grande parte dos favoritismos revela-se tênue, e nenhum time é o Santos do Pelé. Está na hora de acordar e esfriar a cabeça.

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Na contramão

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A interdição de São Januário por quatro jogos, castigo a truculências cometidas por vascaínos inconformados com a campanha nanica do time, alinha-se aos esforços para pacificar ambientes esportivos. Ampliá-la por tempo indeterminado pega a contramão.

A justificativa fragiliza-se entre o preconceito, o esgarçamento democrático e o desconhecimento urbano. É categórico o parecer do Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos encaminhado ao Ministério Público:

“Para contextualizar a total falta de condições de operação do local, partindo da área externa à interna, vê-se que todo o complexo é cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado o que gera clima de insegurança para chegar e sair do estádio. São ruas estreitas, sem área de escape, que sempre ficam lotadas de torcedores se embriagando antes de entrar no estádio”.

Fosse a proximidade de favela razão para paralisar estabelecimentos públicos e privados, o Rio estaria mergulhado numa permanente quarentena. O Maracanã, por exemplo, habita as franjas da Mangueira.

A associação compulsória entre comunidades pobres e insegurança reforça o estigma secular desses espaços cuja realidade transcende o flagelo imposto por traficantes e milicianos, e pelo descaso. Neles prevalecem ideias e iniciativas poderosas. Enfrentam, entre tantas barreiras, a mentalidade escravocrata dominante.

Apoiá-las, em vez de segregá-las, é dever social, moral, constitucional. Ficaria menos difícil sem as discriminações institucionalizadas.

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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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