Elas correm por saúde, autoestima, respeito, e tiram um Brasil da sombra
Participantes da Girl Power Run, Juce Ramos e Lívia Oliveira ajudam mulheres a superar, por meio do esporte, barreiras sociais, físicas, emocionais
A Maré ainda dorme quando Juce Ramos madruga para correr no Fundão. Desperta mais do que o sonho de disputar a primeira maratona, questão de tempo. Ilumina um Brasil apagado por desigualdades e dicriminações viscerais. Reluz a força para redimi-lo.
Quando concilia, com o apoio da mãe e do marido, os treinos, o batente, a jornada doméstica, as aulas de engenharia (sua segunda graduação), a assistente social de 37 anos desafia a invisibilidade paradoxalmente imersa em estatísticas como 20 milhões sem comida, 35 milhões sem água tratada, 9 milhões sem emprego. Converte a arte de viver da fé, cantada por Herbert, em pegadas transformadoras.
“O esporte revelou meu potencial de ir além”, anima-se a embaixadora da Girl Power, corrida de rua que reverencia o empoderamento e a união das mulheres. A edição de domingo agora, em Copacabana, evoca a superação de dores invisíveis – físicas ou emocionais.
Dores que latejam, por exemplo, na baixa autoestima já vivenciada por Juce e por incontáveis brasileiras negras sob a patrulha dos solventes sociais. Dores afiadas pela opressão:
“Sofremos o medo de acabarmos socialmente apagadas ou discriminadas se não cumprirmos papéis para os quais, em geral, somos educadas. Isso dificulta o reconhecimento das nossas capacidades. O esporte me fez enxergar qualidades que eu não via”, orgulha-se a especialista em segurança do trabalho.
O autoconhecimento redentor larga em 2016. Por sugestão de uma colega, Juce começa a correr, despretensiosamente, perto do escritório, na Barra. Ao escavar a improvável janela entre o emprego diurno, os estudos noturnos, os afazeres de casa, os cuidados com a filha Lavínia, ela oxigena o destino. Espana as artificialidades de plantão:
“Decidi reservar uma horinha do dia para cuidar de mim. Melhorei minha saúde física e mental, e descobri belezas abafadas pela imposição de me enquadrar em padrões dominantes. Deixei, por exemplo, de alisar o cabelo. A corrida ajuda a me sentir bonita como eu sou, empoderada, com coragem para soltar as amarras”.
Esse pódio insondável impõe-se às marcas perseguidas nas provas. Inspira transformações de vida. Espelhada na filha, a mãe, Bete, abandonou o sofá e o alisamento capitar. “Hoje, aos 58 anos, ela corre até meia-maratona. É a minha maior conquista”, gratifica-se Juce. “Mobilizei também o meu marido, mas ele é corredor de fim de semana”, ressalva, bem-humorada.
A influência extrapola o perímetro familiar e os seis mil seguidores no Insta. Estende-se ao podcast Alma de Corredoras; ao auxílio a grupos de corrida; à adesão ao projeto de iniciação esportiva Destemidas, parceria da jornalista Carol Barcellos com a ONG Luta pela paz. Iniciativas alinhadas à necessidade de democratizar o esporte:
“Incentivo as pessoas a ultrapassarem barreiras, de acordo com as respectivas realidades, rotinas, histórias. O esporte é um grande instrumento de educação, cidadania, saúde. Temos de torná-lo mais acessível, principalmente a mulheres pretas da periferia, que lutam contra a discriminação, contra a falta de valorização e oportunidade”, enfatiza Juce. Ela acrescenta:
“Muitas mães deixam de se cuidar, de se valorizar, porque se sentiriam culpadas ao não darem atenção integral ao filho, ao marido, à casa. É uma dor silenciosa. Devemos desconstruir esse tabu. As mulheres precisam zelar pelo bem-estar próprio. Um grande desafio”.
A fotógrafa Lívia Oliveira encara tal desafio desde 2017, quando amamentava João Paulo. Passou a correr em São Gonçalo, onde morava, para emagrecer e espantar a depressão.
“Vivia ansiosa, por cobranças associadas à maternidade. A atividade física me curou. Melhorei a cabeça, a disposição, o sono, a alimentação, a relação com a família”, empolga-se.
O êxito impulsionou a entrada na faculdade de nutrição e o circuito funcional Mães que treinam, criado com o marido, André Guilherme, professor de educação física. As três sessões diárias reúnem, nas areias de Icaraí, em Niterói, 40 participantes. Nove delas vão se juntar a Lívia na Girl Power Run do próximo domingo.
“Compartilhar desafios da maternidade e promover saúde fazem eu me sentir viva. Na loucura do dia a dia, as mulheres e, em particular, as mães, precisam de um tempo para os cuidados com corpo, a mente, o emocional. Procuramos facilitá-los, especialmente, a mães sem rede de apoio. É uma corrente do bem”, enaltece a idealizadora.
Lívia e Juce operam aquelas revoluções miúdas que suavizam o mundo. Produzem singelos antídotos contra preconceitos e desamparos à espreita. Tiram da sombra um Brasil possível.
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Para entender as SAFs
O jornalista e pesquisador Irlan Simões também contribui para construirmos um Brasil menos rasteiro. Craque nas reflexões sobre o universo futebolístico, o organizador da coletânea “Clube empresa” (Corner, 2020) mergulha nos conflitos e nuances que orbitam a gestão empresarial dos clubes, não raramente revestida de ufanismo. Contraponto à euforia em torno das sociedades anônimas do futebol (SAFs), a voz ponderada de Irlan ecoa em “A produção do clube: poder, negócio e comunidade no futebol” (Mórula Editorial, 2023).
O livro será lançado neste sábado (5), às 14h, no Al-Farabi, misto de sebo e bar reaberto no Centro (Rua do Mercado). As análises reunidas na publicação derivam da tese de doutorado, pela Uerj, onde ele integra o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme), coordenado por Ronaldo Helal.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.