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Esquinas do Esporte

Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania

Cruzada pela sobrevivência pedaleira do nosso futebol

Organizado por Paulinho Pereira, torneio de rua infanto-juvenil revigora essência lúdica que nos rendeu tantos meninos e meninas bons de bola

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24 abr 2025, 11h50
Paulinho Pereira com os alunos na escolinha de futebol do Leblon
Há 30 anos Pereira forma talentos: "Ensino para a vida", ressalta o ex-jogador do Vasco (Divulgação/Reprodução)
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Acostumado à galera, Paulinho Pereira estranha o silêncio. Dói no peito o domingo vazio de algazarra esportiva. A área de lazer próxima ao Jardim de Alah anda muda. Nenhum quique, nenhuma zoação com a caneta aplicada no colega, nenhuma bomba aterrorizando as vidraças. “Os meninos não me pedem mais uma bola emprestada”, aflige-se o ex-lateral vascaíno. “Precisamos fortalecer a pelada do bairro, da esquina”, conclama.

O silêncio, ufa, passará longe do próximo feriado, 1º de Maio. A garotada vai se lambuzar de dribles, tabelas, pedaladas no Torneio de Futebol de Rua Cruzada 2025. Três contra três, gol pequeno, asfalto riscado de alegria. Raiz da raiz. “Alma do subúrbio pulsando forte”, anima-se o incansável boleiro. Sem concessões à nostalgia, Paulinho revive o moleque que, ao lado de vizinhos como Adílio e Ernani, transformou a Cruzada São Sebastião numa casa de bambas.

Da infância brejeira à margem do canal, Paulinho carrega mais do que a saudade revigorante e o apelido Dazeca (deferência à mãe). Leva o compasso lúdico da bola de gude, da pipa, dos pés esfolados e felizes de tanto jogar. Aos 67 anos, ele conta, num papo por telefone, como essa cadência se eterniza na escolinha tocada há três décadas, nos reencontros com ex-jogadores, nas resenhas pela vizinhança e, claro, no simbólico torneio que vem aí.

Como nasceu esse torneio?

Eu e o Wagner (da Silva), criador do projeto Basquete Cruzada, fomos, há três meses, a uma palestra sobre empreendedorismo no Senac. Ali surgiu a ideia de realizarmos um torneio comunitário para aproveitar o fechamento da rua aos domingos e feriados. Falei com o Sérgio Pugliese, do Museu da Pelada, que apoiou de cara a inciativa. A garotada adorou. Prevejo cerca de 50 participantes, entre crianças e adolescentes, incluindo uma categoria feminina. No final, vou adiantar para você, até os adultos vão poder jogar.

Gol pequeno, três contra três, um formato tipicamente de rua…

Isso aí, alma de subúrbio. Precisamos resgatar a peladinha de rua, o golzinho feito de chinelo ou de pedra. Assim eu, Adílio, Ernani e outros meninos da Cruzada jogávamos no canal e numa praça onde depois ficaria a Cobal. Éramos fominhas. Jogávamos em tudo que lugar, bastava um espacinho. Os espaços curtos ajudam a desenvolver o drible, a tabela rápida, e obrigam todo mundo a correr e a marcar.

Não tem chupa-sangue na pelada de rua…

Chupa-sangue não se cria. Todo mundo corre e aprende a pensar rápido. Por isso, muitos talentos despontam na peladinha de rua. Eu e o Adílio, por exemplo, fomos descobertos desta forma. Seu Haroldo, antigo supervisor do Flamengo, me viu jogar numa praça próxima ao Miguel Couto e me levou para um teste na Gávea. Tinha 15 anos. Treinei bem, mas minha família não consentiu que eu seguisse lá. Depois, o Jorge de Barros, meu professor da minha escola, me disse: “Neguinho, vou te levar pro Vasco”. Aí fiz carreira em São Januário.

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Há décadas sua experiência de jogador é voltada à formação infanto-juvenil. Quais os principais benefícios da educação esportiva?

Mais do que formação esportiva, procuro desenvolver uma formação sociocultural e humanitária na escolinha que coordeno há 30 anos no Posto 11. A começar pelo princípio de integração. Reunimos crianças e adolescentes, entre 4 e 16 anos, do Cantagalo, do Vidigal, da Cruzada, é claro, de bairros da Zona Sul e até do subúrbio. Acima do desenvolvimento de talentos, prevalecem a educação cívica e a transformação social pelo esporte.

De que forma iniciativas assim transformam vidas?

É uma batalha constante. Perdi alunos para o tráfico. Por outro lado, ajudei a transformar vidas. Não propriamente porque alguns viraram jogadores profissionais, o que está mais difícil, mas porque muitos conquistaram um futuro, uma vida melhor, empregados com carteira assinada. Não dou aula para virarem jogadores. Faço trabalho social. Minha satisfação é educar para a vida. Outro ponto gratificante é o impulso no futebol feminino. Abro cada vez mais espaço para as mulheres jogarem bola. Futebol feminino hoje é o meu xodó.

Por que virou seu xodó?

Diziam que garotas da Cruzada não se interessavam por futebol. Então montei um grupo perto do canal. Era formado 15 meninas. Deu muito certo. Ajudou a acabar com preconceitos, inclusive entre as próprias mulheres. As meninas aprendem rápido. Muitas são extremamente habilidosas. Caso, por exemplo, da Alline Calandrine (ex-jogadora, comentarista do Sportv), que fez escolinha comigo e foi jogar profissionalmente em São Paulo, e da Suane, que chegou a ser convocada para a seleção de futebol de areia. Aliás, eu me casei com a Suane. Estamos juntos há mais de 15 anos e temos uma filha de 13, a Valentina. Outro caso, mais recente, é o da Manu, uma menina de 14 muito habilidosa. O esporte pode mudar a vida dela.

Como assim?

Manu apareceu na escolinha há um mês, vendendo bala, ao lado de dois meninos. Moram todos no Jacaré. Os garotos logo pediram para jogar, quando encerrei a aula, por volta das 19h. Manu, olhos brilhando, emendou: “Posso jogar também?”. Na primeira matada de esquerda, percebi o talento dela. Eu lhe disse que escreveria para a mãe sugerindo que passasse a frequentar a escolinha. Então ela me contou que a mãe estava presa, o pai estava morto, morava com madrinha. “Também não sei ler bem”, completou a menina. Aí eu disse que a participação na escolinha era acompanhada da frequência na escola. Não vou desistir dela.

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Perseverança é o segredo da sua jovialidade?  

Busco manter alta a minha energia. Ela alimenta o trabalho e vice-versa. O pessoal brinca: “professor, me dá a receita desse botox”. O segredo é trabalhar com o que gosto, é me manter ativo, ajudando a melhorar a vida das pessoas. A base familiar também conta muito, assim como reencontrar os amigos, ex-jogadores. Tem sempre uma peladinha bacana rolando.

Voltando ao torneio, até que ponto as peladas de rua preservam a memória e a identidade sociocultural do nosso futebol?

Essas disputas, típicas do subúrbio, mantêm a essência do futebol brasileiro. Nosso futebol não seria o que é sem as peladas de rua, sem as peladas do Aterro, das praças. Nelas muitos craques foram descobertos. Nelas vivenciamos o que há de mais precioso, de mais genuíno, no nosso futebol. Por falar em memória, precisamos dar mais atenção a ex-jogadores e ex-jogadoras que contribuíram para nos tornarmos uma referência mundial, mas ficam à sombra, esquecidos. O Museu da Pelada faz um trabalho brioso neste sentido. Sérgio (Pugliese) tira o talento do anonimato.

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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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