Como cantigas de roda, figurinhas reluzem o encontro coletivo
Caçada aos 670 cromos do álbum da Copa 2022 reúne pais, filhos, avós, vizinhos, colegas, desconhecidos numa redentora infância afetiva
Figurinhas exercem um magnetismo transversal. Agregam gerações, estilos, lugares. Periga dia desses um candidato prometer acesso aos pacotes inflacionados.
Sem os quase 600 reais mínimos para compor a coleção, João Gabriel Nery criou o próprio álbum. A história revelada pelo repórter Michel Gomes (publicada no G1) viralizou pelo recado simbólico. Nem a gaiola econômica há de asfixiar a imaginação.
O menino de 8 anos garimpou a crosta instagramável em que caminhamos. Seus desenhos valem ouro graças não só à representação singular de jogadores icônicos. Eles reluzem a beleza escavada sob a superfície fugaz que se alastra na versão 3.0 da “sociedade do espetáculo” denunciada por Guy Debord há mais de meio século.
Por isso as figurinhas fascinam. Desafiam a fugacidade. Gravitam além da Copa, além do sucesso sazonal, além dos sonhos decalcados nos astros bons de bola, de audiência, de receita.
Aqueles retângulos de papel constituem cartas de amor. Aos pedestais esportivos, que lubrificam paixões e aspirações socioeconômicas. À construção de memórias. À fantasia sequestrada pelos boletos, pela correria diária, pelos tempos surdos à pluralidade, famintos de comida, transigência, delicadeza.
Contramão da intolerância, as figurinhas configuram, sobretudo, cartas de amor ao outro. A brincadeira não se consuma no pódio das 70 páginas preenchidas, e sim no percurso coletivo atrás dos 670 cromos.
O brilho está no gosto de recreio. Emana do troca-troca, da expectativa em torno de cada pacote recebido do jornaleiro, nas tabelinhas entre pais, filhos, avós, vizinhos, colegas, desconhecidos. Todos reunidos na infância afetiva, livre das paredes cronológicas e, como diria a ministra Rosa Weber, dos maniqueísmos perturbadores que nos rondam.
O grande achado não é o retrato raro leiloado na internet ou guardado como troféu. A descoberta preciosa vem do convívio que transforma a caça ao tesouro numa cantiga de roda, uma ciranda comunitária. Que as cantigas de roda espanem os tempos perturbadores!
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Dancemos
Os ataques racistas e xenófobos contra Vini Jr. reiteram a discriminação banalizada mundo afora. Resistente ao verniz popular do futebol, exige um combate mais incisivo, incondicional, da comunidade esportiva.
Respostas protocolares, discursos indignados e manobras paliativas não aparam as garras do preconceito visceral. O basta requer avanços educativos, legislativos, jurídicos, administrativos, penais.
Nenhuma mudança substantiva prescinde de punições financeiras, criminais e esportivas aos corresponsáveis: torcedores, clubes, federações. Até quando conveniências políticas e econômicas adiarão o rigor necessário para dirimir a segregação?
Por ora, impõe-se a cadência de Vini Jr. ao sorriso. É um alento vê-lo perenizar a receita infalível das Frenéticas: abrir as asas, soltar as feras, dançar, dançar, dançar. Dancemos todos.
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Comunicação esportiva
Será lançada na próxima segunda (26), às 18h, no Planetário da Gávea, a coletânea “Comunicação estratégica no esporte” (Editoras PUC-Rio e Rebento). Organizada pelos jornalistas e professores Alexandre Carauta e Roberto Falcão, reúne 13 capítulos que integram saberes do jornalismo, da publicidade, das relações públicas e do marketing aplicados ao universo esportivo contemporâneo. Os jornalistas e comentaristas Arthur Dapieve e Carlos Eduardo Éboli assinam, respectivamente, o prefácio e a orelha do livro.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.