Amarelinha, símbolo histórico de diversidade e integração
Senso comunitário despertado na Copa haveria de estender-se ao exercício da cidadania e ao compromisso permanente com o bem-comum e o apuro democrático
Há mais de meio século a Amarelinha configura-se estandarte nacional. Expressa a identidade sintetizada no epíteto rodrigueano “pátria de chuteiras”. Desde Vargas, é sistematicamente apropriada por ambições político-eleitorais.
A jogada não costuma vingar. Cedo ou tarde, o colorido democrático a revoga. Restitui o significado mais valioso da seleção e sua icônica camisa: pluralidade.
Qualquer apropriação revela-se contraditória. Opõe-se à diversidade simbolizada pelo escrete canarinho acostumado à vitória e ao encanto.
O futebol dionisíaco refletiria uma miscinegação atribuída, em meados do século XX, ao país idealizado: moderno, democrático, inovador. Assim sonhava Gilberto Freyre.
Decalcada na política, na cultura, no esporte, a tese prosperou. Com a ajuda da imprensa, pavimentou nossa identidade coletiva.
A Amarelinha retrata mais do que um estilo envolvente de jogar bola, e seu prestígio global. Retrata uma nação imaginada, cuja força viria da capacidade de converter a mistura em virtuosismo, prosperidade.
O Brasil das chuteiras não produziu a democratização prenunciada por Freyre. Tampouco apaga divergências proporcionais ao território continental e à desigualdade crônica. Mas estampa a possibilidade de conciliá-las, de buscar pontes em vez de muros.
Banhada pela espetacularização contemporânea, a Copa suspende as diferenças e o compasso cotidiano, observa Simoni Guedes em O Brasil nas Copas do Mundo: tempo “suspenso” e história. Alinhada aos colegas Roberto DaMatta e Marc Augé, a antropóloga considera a competição um rito de “reforço e recriação da totalidade social”.
O fenômeno extrapola o anseio esportivo em comum. Desperta memórias e valores compartilhados. Compatibiliza provisoriamente pluralismo – indispensável ao enriquecimento do debate público – com coesão numa sociedade fragmentada.
Tal diálogo constitui um desafio às democracias do planeta, principalmente as fragilizadas por arroubos populistas e maniqueísmos rasteiros. Nunca é fácil equalizar diversidade, alteridade, bem-comum.
O senso comunitário atiçado na Copa logo expira. Dissipa-se com a brevidade de uma brisa carnavalesca.
Merecia fôlego maior. Haveria de contagiar o exercício diário da cidadania, a arte de escutar o outro, o rumo tomado na encruzilhada diante da qual decidimos nossas prioridades e nossa estatura moral, nossos invernos e primaveras, nossas memórias e nossos futuros, nosso prumo civilizatório, quem somos e queremos ser.
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Raízes identitárias
Nossa relação visceral com o futebol e a seleção deita raízes na arquitetura identitária simbolizada também pelo samba. Uma construção cultural esmiuçada com habilidade por Ronaldo Helal, entre outros bambas das ciências sociais.
A incursão pioneira de Helal, coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme) da Uerj, desdobra-se em obras como Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil e as coletâneas A invenção do país do futebol – mídia, raça e idolatria e Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol, organizadas ao lado de Antonio Jorge Soares e Hugo Lovisolo e de Alvaro do Cabo, respectivamente. Ajudam a entender o que denominamos brasilidade.
Iniciado há mais de três décadas, o percurso é revisitado pelo também sociólogo Bernardo Borges Buarque de Hollanda no artigo Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal. O texto integra a 47ª edição da Alceu, revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da PUC-Rio.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.