Se o Maracanã restituiu, como só o Maracanã restitui, a comunhão entre um rei e seus súditos, esse rei é Frederico Chaves Guedes e sua majestade ultrapassa as fronteiras tricolores. Alcança a universal dimensão do sonho.
As cores e vozes dançantes saudaram, no par de sábados, uma dádiva acima dos 200 gols, dos títulos nacionais e estaduais, além da lealdade ao pavilhão. Aclamaram o tempo para o qual a arte nos leva. Nele mora a universalidade do ídolo.
Sangue de artilheiro, astúcia mineira, lábia carioca, estilo despojado, ora temperamental, Fred arejou essas frestas temporais. Soprou transcendência nas jogadas, tiradas, obstinações. Hidratou um deserto de ídolos, escasseados com o êxodo precoce de talentos e a ciranda do mercado contemporâneo.
Por razões rentes ao insondável, o ídolo, não importa o feitio, enverniza o prosaico de graça. Escava a poesia que exorciza o obscuro e enfeita a vida. Abre janelas ao recanto em que permanecemos criança.
Nessa fenda espaço-temporal, não raramente saboreamos o êxtase de uma façanha improvável, épica, uma virada no último minuto. Noutras vezes, prevalece ali o afago da memória, e reencontramos o que o escritor Eduardo Galeano chamava de belezas miúdas – sem as quais o mundo fica irremediavelmente grotesco.
O ídolo nos conduz a esse recanto tal qual o céu sertanejo aproxima as estrelas, e nos alumbra. Ali compartilhamos o coração infantil, os afetos imaginados, as alegrias essenciais – como a revivida pelo próprio Fred:
“Eu parecia um menino”, comoveu-se o regente da catarse no Maraca. Referia-se à corrida desembestada depois de marcar, aos 45 do segundo, o quarto da goleada do Flu sobre o Corinthians. Retrato da apoteose antecipada, o pique irradiou delírio nas 45 mil almas lavadas por uma das fábulas instantâneas que o futebol fabrica.
Todos somos aquela arrancada. Somos o moleque que chuta a chapinha feliz, que fantasia o primeiro beijo e o herói nos quadrinhos, nos gramados. Brisas de eternidade.
Por isso Fred pegou. Está decalcado na História, e nas histórias que convertem o menino em torcedor e o torcedor em menino. Histórias que o filiam aos céus e infernos de uma paixão tribal.
Irreversíveis, predominantemente intangíveis, tais pertencimentos conectam-se ao ídolo não apenas por suas proezas. Mas por sua arquitetura simbólica e seu pendor dionisíaco.
Do ídolo, jamais esperamos a perfeição e o sossego dos santos, a firula barroca, a luminosidade dos gênios. Tampouco a habilidade furiosa de Rivellino, a clarividência de Didi, Gérson, a elegância de Nilton Santos, Sócrates, a maestria de Zico, muito menos a divindade de Pelé e Garrincha. Esperamos cumplicidade, autenticidade, intensidade, a humanidade do erro em pequenas porções shakespeareanas.
De ícones iguais a Fred, esperamos os minúsculos milagres dos anjos tortos, a bênção de descalçar, em preciosas pausas, os chumbos cotidianos. Esperamos o pacto com o genuíno, a fibra dos persistentes, o apetite dos artistas. Se assim correspondem, conquistam a maior das glórias: lugar cativo no time de botão.
Por isso Fred pegou. Nas telas, tatuagens, homenagens. O nome do filho, a camisa autografada, a explosão de memes e tuítes, os cortejos da galera, a tietagem da garotada, o emblemático reconhecimento das equipes e torcidas adversárias.
Por isso Fred veste tão bem o verde, o branco, o grená. Da Teófilo Otoni natal às esquinas francesas, das Laranjeiras aos confins da galáxia onde mais pulsar a inquietude de um boleiro, Fred revela-se multicolor.
Como ídolo que se preza, transborda matizes de Almodóvar. Refletem-se, recíprocos, na arquibancada. “Parece Kurosawa”, deslumbra-se um amigo vindo de Angola diante do balé cromático que festeja o eterno 9.
Além do mais, Fred bateu um bolão. Virtuosismo ecoado nos arremates decisivos, nos recordes de gols da Copa do Brasil e do Brasileiro de pontos corridos (37 e 157, respectivamente). Somadas todas as edições do campeonato nacional, desde 1971, detém a honra de ficar atrás só de Roberto Dinamite, outro imortal.
O Maracanã enfeitiçado reverenciou, no inesquecível 9 de julho de 2022, o adeus do baita atacante. Ídolos não se despedem. Não evaporam no frigir instagramável. Nascem, diria Nelson Rodrigues, com o destino das coisas perenes. Nascem para a glória do lugar cativo no time de botão.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.