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Um panorama da música clássica
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Quantos sopranos assassina-se a cada temporada?

“…Ela replicou que sairia por força e tendo-se encaminhado para ir buscar a manta e o chapéu entrou ele no quarto e tirou as pistolas, vindo dizer a ela de novo que não saísse. Ela respondeu-lhe em ar de zombaria que não fazia caso de sua colega e ameaças e que se empregasse alguma força […]

Por fernanda
Atualizado em 25 fev 2017, 17h40 - Publicado em 18 jan 2016, 11h35
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“…Ela replicou que sairia por força e tendo-se encaminhado para ir buscar a manta e o chapéu entrou ele no quarto e tirou as pistolas, vindo dizer a ela de novo que não saísse. Ela respondeu-lhe em ar de zombaria que não fazia caso de sua colega e ameaças e que se empregasse alguma força contra ela, pediria socorro. Que se viu ele no ponto de desespero, porque a amava muito. Na cegueira em que estava puxou pelas pistolas e lhe deu dois tiros, dos quais ela caiu morta.”

Assim o Jonal do Commércio de 22 de junho de 1847 descrevia o assassinato de Isabelle Mège, Quase 170 anos depois, a ópera ainda continua matando suas divas – dentro e fora do palco. Ontem, um marido ciumento com pistolas; hoje padrões de beleza (e magreza) irreais (e insalubres) que se não matam à bala, torturam com câmeras implacáveis ao olhar.

Madame Mège foi uma das prima-donas trazidas pelo ator João Caetano para a sua Companhia Lirica Francesa. Vinha ganhando certo renome desde que estreara nos palcos do Rio de Janeiroem novembro de 1846. Jovem, veio acompanhada do marido e do filho para trabalharem ambos no que os diletantti cariocas chamavam de ‘o Theatro Francês’. Emilio Mège era professor de canto e a mulher uma das principais cantoras daquela temporada. Sua morte foi uma pequena tragédia carioca, amplamente divulgada nos jornais da época. O pivô do crime, um supostamente mulherengo Dr Peixoto, declarou que eram “meras suposições e ilusões de um cérebro que tinha ciúmes da própria sombra”; já o marido afirmava que “havia surpreendido a ela e o Dr Peixoto dando-se beijos.” Qual seria a verdade? Tudo que sabemos é que no dia do crime a cantora disse que queria passear no Jardim Botânico, sozinha porque “precisava passar um dia mais calma” e isso acabou sendo o estopim da briga que levou ao seu assassinato. O Jornal do Commércio não poupou seus leitores de detalhes:“…uma das balas deu na fronte direita e fez saltar os miolos da desgraçada, a outra entrando-lhe pelas costas e atravessando o pulmão. A morte foi instantânea”, escreveram. Depois de pouco mais de um mês o “processo Mège” acabou desaparecendo dos jornais, o conquistador voltando às suas conquistas e o marido assassino, foi absolvido. Tinha ‘lavado sua honra’. Se fosse hoje em dia, esse crime na ópera talvez tivesse um julgamento diferente. Todavia, o processo se arrastaria por longos anos e provavelmente a reputação da vítima seria enlameada de todas as formas. Temo que se o crime fosse ao contrário, a mulher atirando no tenor, honra ou adultério não seriam palavras muito lidas. Talvez as coisas não se resolvam mais “na faca” porém me peguei pensando nos “pequenos crimes” dos quais são vitimas as mulheres cantoras até hoje, e que permanecem impunes. A ópera permanece fortemente sexista. Se não há mais crimes “à bala” — mas não deixa de existir uma quase “morte virtual”.

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Há poucos dias assisti a um vídeo recente com uma das mais famosas divas da atualidade, tentando o tempo todo envolver-se (esconder-se?) em xales e panos. Vocalmente esplêndida, linda de rosto, talvez não tenha mais a cinturinha de capa de revista que tinha antes da ultima gravidez. Está longe de ser uma mulher gorda mas aparentemente foge dos padrões da ópera no cinema. Dificilmente alguém apresentaria protestos médicos por achar inverossímil uma moça mais ‘cheinha’ estar morrendo tísica, mas me pergunto se fazem o mesmo com o tenor ou o barítono?

O tema da cinturinha das prima-donas já causou escândalos recentemente, no infame episódio do “little black dress”, no Covent Garden de Londres. Ninguém me contou, eu estava lá quando tudo estourou pois era diretor assistente nesta remontagem. Uma grande cantora foi substituída porque não caberia num tal ‘vestidinho preto’ que deveria usar na ópera. Escândalo em quatro continentes; de um lado público defendo o puído bordão de que “ópera é voz”, do outro os defensores dos valores teatrais e do Regietheater (para piorar o diretor era alemão). O fato é que a culpa não era de ninguém. A montagem era linda e bem sucedida, tinha estreado anos antes com outro elenco. A protagonista, num tubinho negro, sentava, abaixava e ficava muito tempo no chão como heroína grega abandonada que era. Podia ser um vestido de bolinha amarelinha no tamanho GGG: colocar alí uma mulher que pesava uns bons 120 quilos poderia ser algo entre o impossível e o ridículo. A diva preterida no entanto recebeu seu cachê integral mesmo não cantando, mas apesar do ‘acordo’ colocou a boca no mundo. E fez bem em fazê-lo. Aliás, aproveitou o dinheiro e o tempo livre para fazer uma cirurgia de redução de estômago. O final não feliz da historia é que embora tenha ressurgido com nova silhueta muitos dizem que sua voz nunca foi a mesma.

Esse sexismo não é novo, infelizmente. Esse tema não é novo. Nem vou falar de Maria Callas, que no início dos anos 1950 baixou de uns 100 e tantos quilos e tornou-se o mito que é com uma silhueta de fazer inveja a Audrey Hepburn. O curioso nesse episódio era que o par romântico do soprano que não cabia no vestidinho preto, o tenor que fazia do Deus grego Baco, estava bem bem bem longe de ter as formas mais atléticas do mundo — mas com a cinturinha do tenor ninguém implicou. Também, era tal a circunferência que nem tinha cintura. Aliás, como era careca, ganhou uma peruca. As balas que mataram Mège não existem mas com essa câmeras que transmitem ópera para os cinemas filmando até as obturações do cantores em HD eu fico com a impressão que matamos alguma coisa; talvez a magia dessas mulheres notáveis e de vozes excepcionais. Sexo frágil ou sexo fragilizado

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