O filho da transviada…
Nem todas as histórias são feitas de “era uma vez”, e nem tudo nesses dias do ano precisa falar de Carnaval. Ufa. Há pouco tempo, um site de notícias sobre música clássica anunciava que um dos principais violinistas da orquestra de Los Angeles havia ganho uma ação contra os detentores dos direitos da música “Billie […]

Nem todas as histórias são feitas de “era uma vez”, e nem tudo nesses dias do ano precisa falar de Carnaval. Ufa.
Há pouco tempo, um site de notícias sobre música clássica anunciava que um dos principais violinistas da orquestra de Los Angeles havia ganho uma ação contra os detentores dos direitos da música “Billie Jean”, do finado astro do pop, Michael Jackson. O imbróglio pouco interesse tem: o músico aparecia no video-clip ou tinha um solo e não ganhou por isso algo proporcional ao imenso sucesso da canção etc etc. Desde os tempos bem antes de Rossini que há gente reclamando seu pagamento por participarem em aventuras artísticas, e com razão. Um recente filme dos irmão Cohen — profundamente tocante para quem já passou pelas dificuldades de tentar se estabelecer e ser reconhecido como artista —, “Inside Llewyn Davis” (Balada de um homem comum, no Brasil), traz um episódio parecido: o músico, precisando de dinheiro rápido, aceita abrir mão da porcentagem que lhe caberia sobre futuras vendas para ter ‘cash’; depois descobre que a música virou um grande sucesso de vendas, muito acima dos U$250 que aceitou.
Voltando à “Billie Jean” (e rápido, antes que meus leitores achem que um ‘fake’, fã de música pop invadiu esse blog “ de ópera), ela foi gravada num hoje distante 1980. A letra por isso mesmo tem algo de seu tempo e conta uma história que termina em “She says I am the one, but the kid is not my son” (traduzindo livremente: Ela diz eu sou o cara, mas o filho não é meu”). Hoje em dia, quase 40 anos depois da gravação do tal vídeo, o ‘enredo’ desse grande sucesso do pop talvez não sobrevivesse a um simples um teste de DNA. O que dizer então de “Nega maluca” da dupla F. Lobo e E. Ruy, gravada até por Amália Rodrigues nos anos 1950 e por vários antes dela? Pouco sobreviveria ao “politicamente correto.” Maluca? Não, no máximo “morena bipolar.” Isso me deu o que pensar…em ópera. O fato é que enquanto seguimos cantando e escutando essas músicas, indiferentes ao seu sentido ultrapassado (ou mesmo ofensivo), fazemos a vida negra à pobre da transviada Violetta Valery, ou a infeliz gueixa Butterlfy. Elas são antiquadas.
A ópera, maior espetáculo dos séculos XVIII e XIX, retrata de certa forma os gostos, costumes e estéticas de uma determinada sociedade, e por isso mesmo de uma época. “Billie”, “Nega” e milhares de outras música também. Apesar dos séculos de distância que nos separam, as óperas conseguem ser obras de arte eternas — como provavelmente serão muitos dos melhores videoclipes e marchinhas daqui dois séculos. Nunca me esqueço, na versão televisiva de “O Primo Basílio”, da cena em que um personagem sugere à deprimida Luísa (brilhantemente vivida por Giulia Gam) ir assistir “La Traviata”, ópera predileta da personagem. Traduzida pela música do espetáculo mais aceito na sociedade de então, a história de uma prostituta, de uma ‘decaída’ ou ‘transviada’, tornava-se plenamente aceitável para uma heroína romântica. Talvez da mesma forma, aceitamos hoje letras ofensivas, de baixos duplos e triplos sentidos, e até crianças cantando e se requebrando na boca d uma garrafa. A companhia não faz jus à sinceridade emocionante de “La Traviata” ou a beleza dos sentimentos de “Madame Butterfly”, “Rigoletto”, “Il Trovatore”, “Turandot”, “Werther”, “Tristão e Isolda” e tantas, tantas outras — mas há que se pensar nisso, especialmente antes de chamarem os enredos de óperas de antiquados.
É claro que existem tramas que abusam do direito de ser “pouco-críveis”. A cigana que joga a criança errada na fogueira ou o poeta que dá um tiro no peito e continua cantando meia hora, firme e forte, não ajudam muito a minha tese…mas a grande Janete Clair está ai para oferecer dúzias de exemplos de defesa. Além do mais ninguém realmente achou que Dustin Hoffmann era uma mulher em “Tootsie”. Se você encontrasse com Julie Andrews vestida como ‘Victor’ de “Victor ou Vitória” no vestiário do Maracanã, acharia a coisa mais normal do mundo?
Resumo da ópera: esse negócio de antiquado é coisa do tempo da minha avó.
E como já dizia Manuel Bandeira: Evoé Momo! Evo baco!!
“People always told me be careful of what you do
And don’t go around breaking young girls’ hearts
And mother always told me be careful of who you love
And be careful of what you do ’cause the lie becomes the truth”