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Daniela Name

Por Daniela Name, crítica e curadora de arte Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Arte e tudo aquilo que a visita
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Selarón, pintor

Exposição com 300 trabalhos do artista chileno revela a imaginação latina de um cronista da Lapa

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Atualizado em 17 out 2024, 14h57 - Publicado em 17 out 2024, 13h22
Obra de Jorge Selarón
Uma das pinturas de Selarón, com autorretrato e a personagem grávida que ele retratou continuadamente (Daniela Name/Arquivo pessoal)
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Mais conhecido pela escadaria na Lapa que se transformou no terceiro ponto turístico mais visitado do Rio de Janeiro, perdendo apenas para o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar, o chileno Jorge Selarón (1947-2013) é celebrado em uma exposição na Galeria Scenarium, da Rua do Lavradio, que reúne cerca de 300 pinturas, feitas com técnica mista e variados formatos.  A mostra expande a percepção sobre a obra, convidando o público a um necessário questionamento sobre as razões de apenas determinados tipos de artista — aqueles com formação acadêmica ou algum tipo de estudo formal — serem reconhecidos como tal.  Selarón foi artista, segue sendo, através de sua obra. Selarón foi um pintor. Quem se dispõe a ficar diante de seus trabalhos com olhar atento e despido de preconceitos, percebe isso com facilidade. 

Contam muito para esta constatação três características cruciais: a primeira é uma grande capacidade de síntese, que faz com que suas pinturas sejam irmãs do desenho e da caricatura. São pinturas-cronistas, que percorrem a paisagem boêmia do Centro do Rio. A segunda vem de uma envergadura técnica que permite ao artista realizar escolhas extremamente conscientes para a criação de um repertório,  o que orienta as formas como esse universo subjetivo e imagético vai ser abordado plasticamente. Por fim, é impressionante como Selarón foi um criador incansável e profícuo, o que demonstra não apenas a facilidade que tinha para produzir e  concluir os trabalhos, mas também a necessidade de fazê-lo. A maioria de suas obras era vendida nas ruas da cidade, mais precisamente entre as mesas dos bares da Lapa, para os comensais e também para os donos dos estabelecimentos.  Com estes últimos, estabeleceu uma relação de permuta, na qual trocava suas pinturas por alimentação.

Obra de Jorge Selarón
A Lapa vista por Selarón, com o Bar Brasil à esquerda: artista troca pinturas por alimntação (Daniela Name/Reprodução)

A mostra ocupa a galeria principal de um casarão do século XIX, que foi residência do Visconde de Itaboraí e ganhou uma reforma capitaneada por Plínio Fróes e Nelson Torzecki, sócios do restaurante Rio Scenarium e lideranças do Polo Cultural da Rua do Lavradio.  No mesmo espaço, mas em galerias distintas, há ainda duas outras exposições: uma individual do artista Charles Barreto, com curadoria de Martha Niklaus, e uma interessantíssima exposição de azulejaria (com azulejos datados do século XVIII até o século XX, e neste último grupo se destacam os exemplares de um Art Déco luso-carioca e aqueles criados por artistas ligados à arquitetura modernista brasileira, caso de Athos Bulcão e Burle Marx).  

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O espaço expositivo não convencional, mas tratado de forma muito profissional pelos anfitriões, reforça a bem-vinda inquietude causada pela mostra de Selarón. “Arte é aquilo que eu e você chamamos de arte”, diz o título de um livro fundamental de Frederico Morais, grande crítico que inspirou meu texto de estreia na primeira fase desta coluna na Veja Rio (leia aqui). “A arte pode ser ruim, boa ou indiferente, mas qualquer que seja o adjetivo empregado, temos que chamá-la de arte”, afirmou o artista Marcel Duchamp, em 1963, para adiante concluir: “A arte não me interessa, apenas os artistas”.

É importante ler e reler a frase de Duchamp, porque ela é uma espécie de labirinto, com muitos percursos e inúmeras saídas. Uma delas é o entendimento de que a arte só é importante porque alguém a realizou; porque é um vestígio de nossa humanidade. Só há artistas entre os humanos. Mesmo que o capitalismo cognitivo consiga aprimorar muito a chamada inteligência artificial, ainda faltará a ela a noção de tempo, a memória individual e coletiva e as erupções dessas memórias, convulsivas e imprevistas, que só cada indivíduo humano pode ter. É dessa subjetividade ígnea, vulcânica, que nasce o processo criativo, e só depois ele se estabiliza em um repertório artístico.

É muito bonito constatar como Selarón  organiza seu magma. A começar pela invenção do próprio nome, um anagrama “torto” de seu sobrenome real: Moráles.  O “m” foi trocado pelo “n”. Personagem de si mesmo, na assinatura e nos inúmeros autorretratos, ele também construiu uma galeria de tipos que se repete com frequência nas pinturas: a mulher negra grávida, o galo, o gato  o peixe, o cachorro macho no cio, que muitas vezes se embaralham. O próprio artista pode aparecer grávido, as figuras humanas podem ter rostos animais, os bichos podem ganhar expressões humanas, como se aquilo que o artista pinta e repete fossem arcanos de um baralho de cartas, que ele vai recombinando na mesa de jogo.  A pequena parte da cidade que o artista transformou em seu universo também é um outro personagem, que abraça todos os demais. E é nos panoramas da paisagem da Lapa, nos quais se vê bares como o Brasil e o Ernesto, que o artista demonstra com muita força seu indiscutível domínio técnico.

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Obras de Selarón
Duas das pinturas na mostra na Rua do Lavradio: escolhas conscientes de repertório, cores e suportes (Daniela Name/Reprodução)

 “Queria colocar tudo num quadro até que ele caísse como um fruto podre no chão”, disse o pintor Jorge Guinle, em 1982. Uma frase que aponta para a pintura, e qualquer outra linguagem artística, como um depositário de subjetividades e, mais do que isso, como um resultado de escolhas. O desejo existe de “botar tudo” existe, mas o quadro não cai de podre, afinal.  Porque nem tudo vai parar em sua superfície. A exposição na Rua do Lavradio evidencia Selarón como um artista muito consciente d suas escolhas. Além das paredes repletas de pinturas, há uma vitrine, na qual está uma anotação do artista de 12 de março de 1977: “Cidade do Panamá. Foi nesta que eu inventei pintar sempre uma mulher grávida”. Ao lado do papel, fotografias que mostram o artista posando com uma mulher negra grávida, carregando um cesto de produtos para vender.  São variações desta moça que ele pintou a vida inteira, muitas vezes pondo-se no lugar dela. 

Escadaria Selarón
A escadaria decorada por Selarón na Lapa é 3o ponto turístico mais visitado no Rio e traz cenas semelhantes às das pinturas (Alexandre Macieira - Rio Convention Bureau/Divulgação)

Chama muita atenção, ainda, como Selarón materializa este repertório. Até morrer, vítimas de facadas, um crime que a polícia concluiu de forma pouco convincente como suicídio, o artista chileno se sustentou com o trabalho que vendia nas ruas. Enfrentou muitas dificuldades, a ponto de, como já dito, trocar pinturas por comida (entre os trabalhos na Galeria Scenarium, há uma espécie de “mapa Selarón”, já que muitos donos de bares da Lapa possuem obras adquiridas nestas condições). Mas o que talvez seja mais comovente na exposição é a percepção de que Selarón não permitiu que sua obra sucumbisse à escassez ou se apoiasse nela como tema.

Engenhosamente, ele compreende as limitações e tira partido delas para orientar seus gestos artísticos. Na impossibilidade de ter muitas cores de tinta, limita sua paleta a preto, branco e vermelho; sem poder comprar telas, pinta sobre pedaços de madeira. Provavelmente, preparava cada suporte com uma tinta comum branca (guache ou acrílica),e é esta camada que recebe esboços a lápis, também vistos na mostra. Com tudo pronto, enverniza cada obra, que perambularia com ele de mesa em mesa e precisaria estar protegida, com um material de baixa qualidade. Depois de oxidar, essa película cobra cada cena com um véu amarelado, ocre, que, em vez de prejudicar, auxilia o trabalho. É um cobertor que agasalha a obra com suas condições sociais e sua história, e, sem que eu esteja aqui romantizando a pobreza, isso tem muita beleza no percurso percorrido pelo artista.

Volto à frase de Duchamp e à necessidade de compreender a arte como consequência de nossa humanidade. Todos os humanos podem ser artistas, bons ou maus, se assim o que quiserem. Reconhecer isso é entender que a arte, em seus momentos luminosos, pode ser, como definiu Fernanda Montenegro, “um ombro”. Em entrevista ao colega Lázaro Ramos, a atriz afirma a arte como consolo. Também a enxergo como esse bálsamo, como uma pausa para as angústias que a humanidade produziu para ela mesma. Tenho a sensação de que deixei a Rua do Lavradio reconhecendo mais fortemente esse poder regenerativo e cicatrizante da arte, depois de ser abraçada e acolhida pela obra de um artista que muitos ao meu redor sequer chamariam de artista. 

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DE UM LUGAR NA PLATEIA

Jorge Amado e Toninha de Oxóssi
Jorge Amado e Toninha, companheira de Camafeu de Oxóssi: momento emocionante de “3 Obás de Xangô” (3 Obás de Xangô/Divulgação)

 

TRÊS OBÁS DE XANGÔ: O filme dirigido por Sérgio Machado ganhou o troféu de Melhor Documentário no último Festival do Rio e será apresentado na Mostra de Cinema em São Paulo. Mas, se eu fosse em você, me planejava desde já para pegar um lugar na plateia assim que estrear no circuito carioca, o que vai acontecer no primeiro semestre do ano que vem. Ao inventariar afetivamente os legados do escritor Jorge Amado, do compositor Dorival Caymmi e do pintor Carybé – os obás de Xangô do título – o diretor e seus parceiros de equipe mostram como, depois de beberem da cultura, da ancestralidade e da religiosidade da Bahia, os três artistas também colaboraram para a invenção daquilo que entendemos como baianidade. Bahia de hoje também é a Bahia que eles escreveram, cantaram, pintaram. Vou voltar ao cinema por várias cenas do filme e de suas preciosas entrevistas, mas uma em especial me atingiu como flecha: aquela em que Jorge Amado, ciente de que está reinando no centro da câmera, chama o amigo, o compositor Camafeu de Oxóssi, para ocupar seu lugar em cena. Ciente de que seu irmão de axé, doente, não conseguiria cantar a própria obra, o escritor convoca Toninha, companheira de Camafeu, para fazer isso. Um filme sobre escutas, sobre invenções e, acima de tudo, sobre uma poderosa fraternidade que a Bahia enraizou como cultura a partir do candomblé e outras afro confluências.

 

 

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