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Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo
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Dia da Mentira: as “fake news” que marcaram a pandemia de Gripe Espanhola

Em meio à tragédia causada pela "influenza", doença que matou milhões no mundo, em 1918, mentiras, boatos e crendices assombravam a população do Rio

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Atualizado em 1 abr 2021, 06h33 - Publicado em 1 abr 2021, 06h17

Você sabe por que 1o de abril se tornou o Dia da Mentira? No século XVI, o Ano Novo era comemorado pelos europeus entre 25 de março e 1o de abril, momento em que muito se festejava. Quando o rei Carlos IX da França decretou a adoção do calendário gregoriano, em 1564, o Ano Novo passou a ser em 1o de janeiro. Mas quando chegava 1o de abril, muitos engraçadinhos enviavam convites de festas de Réveillon aos desavisados, para tirar sarro deles: eram as plaisanteries. Os que caíam nesses “golpes”, eram chamados de “Bobos de Abril” (depois, no inglês, a data passou por isso a se chamar “April’s Fool Day”.

No Rio de Janeiro, muitas mentiras, boatos e fofocas foram marcantes ao longo da nossa história. Quem diria né? O fenômeno das fake news de novo não tem nada; só mudou de nome. Entre tantos exemplos ao longo da nossa história, a terrível pandemia de Gripe Espanhola, uma tragédia que assolou o Brasil e o mundo entre os anos de 1918 e 1920, destacou-se não apenas pela sua rápida letalidade, mas também pela intensa disseminação de notícias falsas, mentiras, boataria e muita, muita crendice.

Em setembro de 1918, quando o vírus de influenza A-H1N1 desembarcou no Rio, a bordo no navio inglês Demerara, ainda não se conheciam tratamentos específicos para infecções virais e o acesso a medicamentos confiáveis e à informação eram limitados. A população carioca não se poupou de recorrer à sabedoria popular, a boatos, à pseudociência e às superstições. Extremamente católico, o povo apegava-se à religião, saindo em procissões e missas nas ruas e igrejas do Rio, que acabavam, na prática, contribuindo para o contágio. Elixires, pastilhas e comprimidos milagrosos eram propagandeados em jornais e revistas do Rio de Janeiro.

A historiadora Liane Maria Bertucci, em sua tese de doutorado intitulada “Influenza, a medicina enferma”, menciona:

“A medicina popular, com suas mezinhas, chás, emplastros e beberagens diversas, passa a ser foco de especulação comercial, e é encarada como uma alternativa diante do mal incompreensível. Essa proliferação de receitas milagrosas espelha as insatisfações da população com a falta de atendimento, com a impossibilidade de estabelecer um diagnóstico preciso e com a ausência de estratégias do governo e das autoridades sanitárias; mas, principalmente, com as limitações das instituições sanitárias em socorrê-la diante da gripe assassina.”

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Atribui-se até mesmo a invenção da caipirinha a um método popular de tratamento da “hespanhola” — um misto de cachaça, limão, alho, mel e até gengibre, que teria efeitos certeiros para prevenir a influenza. Não funcionava, mas o povo gostou da ideia e, depois, só retirou o alho, substituiu o mel pelo açúcar e encheu o copo de gelo. Na esteira das crendices, fumo-de-rolo, cigarros e charutos eram tidos como eficazes meios de prevenção. O que não faltavam eram opções de “tratamento precoce”, que garantiam eficácia, mesmo que sem nenhuma comprovação científica.

Quartel Central do Corpo de Bombeiros, no Campo de Santana. População perigosamente aglomerada, aguardando a venda de galinhas - Revista Careta - 1918
Quartel Central do Corpo de Bombeiros, no Campo de Santana. População perigosamente aglomerada, aguardando a venda de galinhas – (Revista Careta (outubro de 1918, edição 541) - Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Reprodução)

A canja de galinha, prato tradicionalmente dado até hoje a quem está doente, passou a ser consumida de forma massiva pelos cariocas de então — tudo porque se espalhou a torto e a direito que as propriedades de cura desse caldo para os enfermos de influenza eram infalíveis. Em meio ao caos que se instaurou na cidade, somente o Corpo de Bombeiros estava autorizado a vender galinhas à população. Não demorou para que se formasse um mercado paralelo. Segundo registros, havia até brigas e confusões para conseguir uma pobre coitada galinácea.

A grande calamidade levou à proliferação de lendas urbanas como a do “chá-da-meia-noite”, terrível preparação que seria, supostamente, dada a pacientes graves da Santa Casa de Misericórdia para abreviar suas vidas e, assim, liberar mais leitos na instituição. Não passava, entretanto, de mais um dos muitos infames boatos que se espalhavam pela cidade com a mesma velocidade que os falecimentos pela “hespanhola”. Pelo contrário, o hospital central da Santa Casa foi importante centro de acolhimento no combate à “grippe”.

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Em dois meses, havíamos perdido mais de 15.000 vidas somente no Distrito Federal. E, como disse Oswald de Andrade em suas memórias, “assim como veio, a grippe foi”. As pessoas simplesmente pararam de adoecer.

Depois de passado o pior, o carioca, aliviado por ter sobrevivido, aproveitou para cair na folia, já no ano seguinte. E tratou de lidar com a memória daquela tragédia ainda tão recente com o humor que lhe é característico, presente em fantasias — teve muito marmanjo que saiu pelas ruas fantasiado de dançarina de flamenco— e até em alegorias do insano carnaval pós-pandemia. Na folia de 1919, um carro alegórico dos Democráticos trazia uma enorme xícara, acompanhada dos dizeres: “Chá da meia noite, concorrência à grippe”.

Ficou muito famosa a marchinha de 1919, também dos Democráticos, que dizia:

Assim é que é! Viva a folia!
Viva Momo – Viva a Troça!
Não há tristeza que possa
Suportar tanta alegria.
Quem não morreu da Espanhola,
Quem dela pode escapar
Não dá mais tratos à bola
Toca a rir, Toca a brincar…

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*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.

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