Um Carnaval de cura, seja ele quando for
Assim como o Carnaval de 1919 serviu como um expurgo da gripe espanhola, a folia pós-pandemia será como um bálsamo para a saúde mental dos cariocas
Parece até ter sido pela misericórdia dos foliões que essa “praga” chamada COVID-19 surgiu por aqui só depois do Carnaval (sim, Carnaval com “c” maiúsculo!).
O registro do primeiro caso da doença na Cidade Maravilhosa aconteceu no oitavo dia pós quarta-feira de cinzas que, cá entre nós, ainda é dia de cair na folia no “Me enterra na quarta”, o querido bloco de marchinhas que sai de Santa Teresa, com as forças que restaram.
Cá estamos. Nos aproximamos de cinco meses de caos. Angústia, medo, tensão. Ansiedade, horror, negação. Raiva, negligência, depressão. Neurose, carência.
Todo um contexto político, econômico e social para tirar o sono de qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e empatia. O que será do país? O que será de nós?
Mergulhados em incertezas. Instabilidade. Desemprego. Dezenas de milhares de mortes..
Bom, seria perfeitamente possível passar este texto inteiro listando o inventário dos últimos meses, os sentimentos exacerbados, as más notícias, os dados desesperadores levantados desde quando isso começou, mas não.
Preferimos deixar bem claro: já passamos por algo bem parecido na primavera do ano de 1918, quando o vírus “A H1N1” desembarcou no porto do Rio e, em dois meses, fez 15.000 vítimas fatais só na nossa cidade. Aquela que ficou conhecida como “gripe espanhola”, uma pandemia global que matou entre 17 e 50 milhões de pessoas também teve efeitos devastadores na saúde mental dos sobreviventes.
O texto de André Biernath para a Veja Saúde, intitulado A epidemia oculta: saúde mental na era da Covid-19 conta essa história e traz um alerta: “na esteira do coronavírus e seus desdobramentos, transtornos psicológicos como ansiedade e depressão representarão uma segunda onda de estragos à saúde”.
Assim como chegou, a gripe foi embora, já no final de 1918, deixando em seu rastro um enorme trauma coletivo. E quem iria imaginar que o Carnaval — a nossa maior tradição cultural — serviria como um remédio para as mentes aflitas — porém aliviadas — dos sobreviventes cariocas.
“Poucas semanas antes, estávamos a milímetros da morte. Agora já eram as vésperas de 1919. Quem sobreviveu não perderia por nada aquele Carnaval”. Essa frase-síntese foi extraída do texto “O carnaval da guerra e da gripe”, prólogo da obra “Metrópole à beira-mar”, de Ruy Castro.
Dizem que foi um milagre a gripe espanhola não ter sido uma tragédia ainda maior em nossa cidade. Esse período curto, porém sombrio, de nossa história deu lugar a um sentimento coletivo muito peculiar: a ansiedade de se viver. O Carnaval de 1919 simbolizou a explosão de alegria e de alívio por ter sobrevivido à “hespanhola”.
Naquele ano, o Carnaval caiu em março e, ao longo de janeiro e fevereiro, o Rei Momo “era chamado de deus, não de rei, e já pontificava sobre seus devotos”. Foi também naquele ano que blocos formados apenas por mulheres foram criados e o Cordão do Bola Preta desfilou pela primeira vez.
A vivência da catástrofe parecia ter trazido um sentimento de carpe diem — “e se fosse o último Carnaval? O sentimento se desdobrou em uma intensa retomada da atividade econômica na Cidade, às vésperas da folia. O comércio prosperou com a ânsia pelas fantasias, confetes, purpurinas e lantejoulas.
O Carnaval de 1919, pós “espanhola”, marcou a história da cidade.
Na nossa cidade, os carnavalescos das escolas de samba já anunciaram que só vai ter festa se tiver vacina, até por conta de o núcleo das escolas ser manifestamente composto por pessoas do grupo de risco.
O carioca deseja tanto, tanto, que tudo isso passe logo e que em fevereiro, no auge do verão, seja possível repetir o roteiro de sair de manhã cedo para o bloco, gastar toda a energia, mergulhar na catarse, cantar, aos berros, cada palavra das tradicionais marchinhas, se emocionar quando os músicos resolvem desacelerar para fazer uma versão instrumental de “Carinhoso” numa ladeira de Santa Teresa, com a senhora chorando de alegria na janela…é possível prever cada segundo da cena.
Seria, sim, como um bálsamo milagroso depois de tanta tristeza. E o povo costuma acreditar em milagres…
Não se está aqui a defender irresponsabilidade ou negligência com o próximo, mas apenas a sustentar a importância da vivência carnavalesca — mas fora de época mesmo, assim que estivermos seguros e vacinados, é claro.
“Na Quarta-Feira de Cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior Carnaval de sua história.” Vamos andar com fé para quem sabe repetir a frase de Ruy em fevereiro.
*Texto feito em parceria com a advogada Jennifer Vidal Ferreira, redatora do perfil @RioAntigo no Instagram e surdista dos blocos Amigos da Onça, Trombloco e Amores Líquidos no carnaval de rua do Rio de Janeiro.
**Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.