135 anos do Colégio Militar: venturas e desventuras de um ex-aluno
Em 6 de maio de 1889, o tradicional educandário da Tijuca foi inaugurado. Quase um século e meio depois, colunista mistura história com memórias pessoais
Este colunista que vos escreve hoje assume outro “chapéu”. Aqui quem fala é o aluno Sampaio. Tive o privilégio de estudar no tradicionalíssimo Colégio Militar do Rio de Janeiro, que hoje completa 135 anos de existência. A celebração é a tradicional e pomposa solenidade do “6 de maio”. Era o momento em que a gente usava a túnica de gala — branca com botões dourados —, a calça ou a saia-calça garance (um nome militarista para denominar “vermelho sangue”?) e as luvas brancas. Sim, luvas brancas! Trata-se do dia mais especial do calendário desse lugar icônico, e também controverso, que foi minha segunda casa durante sete incríveis anos.
Filho de pai e mãe civis, fui aprovado em décimo lugar no concurso de admissão para a antiga 5ª série, quase 20 anos antes de criar o Instagram do @RioAntigo. Entendam: esse meu amor pelo Rio Antigo não é à toa. É que por sete anos incríveis, esse importante patrimônio histórico fez parte essencial da minha vida.
A história dessa instituição se confunde com a história do Brasil. Criado em um contexto de grandes mudanças no nosso país, viu a Monarquia cair e a República chegar. Foi palco e também espectador de grandes transformações ocorridas na nossa sociedade.
E é por isso que vamos voltar lá pro começo…
A criação de uma instituição educacional destinada aos filhos dos militares mortos ou feridos na Guerra do Paraguai (1864-1870) foi proposta em 1865, no momento da fundação da Sociedade do Asilo de Inválidos da Pátria.
Entretanto, foi apenas em março de 1889, quase 30 anos após os conflitos, que, por esforço , dedicação e influência do conselheiro imperial Thomaz Coelho, um entusiasta da causa, o Imperador Dom Pedro II autorizou, por Decreto Imperial, a fundação do Imperial Colégio Militar da Corte, nas terras da antiga chácara do Conde de Bonfim, localizada no Engenho Velho, antigo domínio agrário dos jesuítas que hoje chamamos de Tijuca.
Finalmente, no dia 6 de maio de 1889, há exatos 135 anos, os 44 alunos do Imperial Colégio Militar tiveram suas primeiras aulas no interior do Palacete da Babilônia.
O Palacete da Babilônia — ou “Casa Rosa” — é hoje a sede do comando do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Essa joia arquitetônica foi a residência do Conde de Bonfim e, depois, de seu primogênito e herdeiro — o Barão de Mesquita — e de sua esposa, a Baronesa de Itacuruçá. Construído entre 1864 e 1866, em estilo neoclássico, o Palacete da Babilônia é um raro e autêntico exemplar residencial da alta nobreza imperial brasileira.
Já na República, novos pavilhões de aula foram erguidos, para atender ao número cada vez maior de alunos, que logo passaram a ser, também, oriundos de famílias civis. Na área externa, um enorme campo para atividades esportivas e treinamento militar, além de uma pista de equitação, formavam o setor de atividades físicas.
Ao longo das décadas, um complexo desportivo tomou forma, com a construção de um ginásio poliesportivo, entregue em 1931, e de um parque aquático, inaugurado em 1954. O Colégio Militar, em contraste com grande parte das instituições de ensino da cidade, possuía uma invejável infraestrutura para a prática das mais variadas modalidades desportivas, da esgrima ao atletismo, da ginástica olímpica ao handebol.
Em 1961, a Associação dos Ex-Alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro organizou-se para solicitar o tombamento do Palacete da Babilônia. O plano proposto era que a suntuosa “Casa Rosa” fosse convertida em um museu, no intuito de valorizar a história do colégio, já tão diversa e longeva, e garantir a preservação de sua memória institucional.
Entretanto, foi somente em 1994, mais de três décadas depois dos esforços iniciais dos ex-alunos, que o Palacete da Babilônia e as demais edificações históricas do colégio conquistaram o tombamento na esfera municipal, juntamente com seu entorno (a Pedra da Babilônia e o ambiente urbano residencial). No ano 2000, o Palacete da Babilônia foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Em 1989, ano de seu centenário, o Colégio Militar do Rio de Janeiro recebeu sua primeira turma mista, na antiga 5ª série do primeiro grau (atual 6º ano do ensino fundamental). Poucos anos depois, em 1993, ao alcançarem o segundo grau (atual ensino médio), as pioneiras puderam, assim como os meninos, ingressar nas Armas, que, na época, eram Infantaria, Cavalaria, Artilharia e Comunicações.
Em 1997, escolhi a Bateria de Artilharia como minha arma. Foi a melhor escolha possível. Foi a arma escolhida por quase todos os meus melhores amigos e amigas. Lá, fui assistente do Grêmio Mallet em 1997 e, no ano seguinte, presidente. Como tradição, realizávamos salvas de tiro de canhão em homenagem a autoridades que nos visitavam em eventos e solenidades. O tiro era de festim, mas o barulho era real, vindo de canhões Krupp que chegaram no Colégio em 1900.
Só que não era exatamente fácil ser um aluno do CMRJ. Além do alto nível de dificuldade das provas, que podiam ser de surpresa (a temida “VI”, Verificação Imediata), também havia uma problemática cultural que tornava tudo mais complexo. Nos anos 90, a linha pedagógica do Colégio Militar parecia ser marcada por um forte estímulo à competição: boletim sempre exposto no quadro do corredor, turmas separadas pela classificação em um ranking de notas, graduações análogas à hierarquia militar no uniforme. Isso tudo incentivava a separação entre nós, alunos. Uma divisão hierárquica que tinha na meritocracia acadêmica seus muros muito visíveis e evidentes.
Apesar da sanha segregadora desse ambiente meritocrático, a abundância de atividades esportivas e socioculturais oferecidas pelo colégio — ou criadas por nós mesmos — contribuía muito para a tão necessária integração dos alunos, pedagogicamente estimulados à desagregação. Éramos uma mistura tão interessante…gente das mais variadas classes sociais, etnias, origens, estados, bairros, estilos… mas a gente se juntava. Grupos se formavam, é claro. A “tribalização” é da natureza humana; mas a união e o companheirismo eram geralmente mais fortes do que a força motriz da hierarquia acadêmica, que não engatava e não pegava no tranco, porque lhe faltava naturalidade.
Foram anos inesquecíveis, durante os quais tive uma formação sólida e privilegiada. Penei um bocado com a dureza da disciplina militar, mas, no final das contas, na ponta do lápis, o saldo era positivo. No “CM”, fiz amizades sinceras e verdadeiras que levo comigo para toda a vida (vocês sabem quem vocês são).
Lá também aprendi a amar o meu país. Estou falando de patriotismo de verdade; não esse da boca pra fora, que só aparece no discurso e na liturgia, nas cores da roupa ou na hora em que você precisa desmoralizar o seu rival. Aprendi a grandeza do meu país com a educação; com a Ciência; com a Cultura. E com o privilégio de ter tanta diversidade em um momento em que nem se usava quase essa palavra.
É por isso que eu, como ex-aluno da Casa de Thomaz Coelho, rejeito todo e qualquer tipo de tentativa de apropriação do meu querido colégio por um grupo político específico, que deseja ser “dono” da nossa história e dos nossos valores, meramente a fim de alcançar objetivos eleitorais.
Nosso “CM” é muito mais do que um factoide eleitoral. É lugar de excelência em educação, de respeito à ciência, de cuidado com a saúde, de estímulo à cultura, de prática intensa dos mais variados esportes e muita, mas muita, amizade e companheirismo, apesar dos pesares.
Como lugar de afeto que foi, é e sempre será, para mim e para milhares e milhares de pessoas Brasil afora, o Imperial Colégio Militar, “com esforço vibrante e febril”, como diz nossa bela canção, não aceitará a exploração politiqueira de sua alma. Ela não está à venda. Nem é negociável a nossa história, em troco de mais capital político para alguns.
Que os abutres e aves de rapina de ocasião deixem nosso querido colégio livre das garras da velha política que se traveste de novidade. O Colégio Militar é eterno. Vocês? Vão e vêm, num sopro.
A lindíssima canção do Colégio Militar é cantada na solenidade que ocorre todo ano, no dia 6 de maio. Ela tem muitos versos emocionantes. O mais lindo deles diz assim:
“Mas um dia o pranto há de nossos olhos inundar, ao chorarmos a saudade…do Colégio Militar! Companheiros leais, trabalhemos e faremos, num esforço vibrante e febril, desta Casa que amamos um templo, um exemplo, grandioso de amor ao Brasil!”
Nessa hora, duvido que um ex-aluno ou uma ex-aluna lá presente hoje mais cedo tenha conseguido segurar a emoção. A lágrima brota. Sempre. Precisamos, no entanto, entender que essas palavras pertencem a todos nós, cadetes de “Thomaz Coelho”.
ZUM ZARAVALHO!
*Al. Sampaio – 320/2 – Bateria de Artilharia – Turma Maria Quitéria – 1999
**Daniel Sampaio é advogado, memorialista e ativista do patrimônio cultural. Fundou o Instagram @RioAntigo e é presidente do Instituto Rio Antigo