Quando ouço previsões sobre o Metaverso e vejo as cifras envolvidas neste ambiente digital uma parte de mim acha o cenário interessante e promissor e a outra parte vê com incredulidade a atenção dispendida ao segmento virtual quando há tanto ainda a ser feito no mundo físico. Pedindo licença aos leitores, hoje vou focar a coluna nesta segunda parte mais pessimista, digamos assim. Na verdade vou explicar o motivo que me fez sentar para escrever. Li que o Carrefour investiu na compra de uma área equivalente a 30 supermercados no The Sandbox, o jogo baseado em Blockchain que permite aos jogadores a construção de vidas digitais, ou seja, um dos mais importantes metaversos em atividade. A partir disso fiquei pensativa.
Na hora pensei em João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado até a morte por seguranças em um estacionamento da rede, em Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020. O episódio trágico que repercutiu em todo o país e chocou pela brutalidade foi o maior gerenciamento de crise da marca Carrefour, que já havia vivido questões problemáticas, mas de menores proporções, como o caso do cachorro Manchinha, envenenado e espancado até a morte, em Osasco, em dezembro de 2018. É indissociável a reflexão de como há energia para se construir uma nova realidade, quando a que temos aqui ainda está longe de ser a ideal.
Notem, sou entusiasta de quase tudo no ambiente digital e acho louvável todo o campo de experimentação que temos com a internet. Entretanto, em um mundo ainda tão desigual e violento, me impressionam as fugas romantizadas dos atores que realmente têm a capacidade de impactar a realidade em que vivemos. Quantos metaversos existem a cada esquina? Quantas são as realidades completamente diferentes umas das outras que, apesar de estarmos próximos, não encaramos? Há um abismo na sociedade e este acontece no mundo real.
A título de imparcialidade vale dizer que o Carrefour aceitou pagar 115 milhões de reais em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), seis meses após o assassinato de Beto Freitas. As políticas esmiuçadas oficialmente pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul falavam em bolsas de educação, campanhas educativas e projetos sociais de combate ao racismo. Ao que tudo indica o combinado vem sendo cumprido e a marca francesa de 1959 está honrando o acordo. Vale, entretanto, ampliar a semiótica do Metaverso, que é a proposta dessa coluna.
Marcas como Gucci, Burberry, Nike, Karl Lagerfeld, Gap, Nivea, Clinique, entre outras, já lançaram seus projetos do lado de lá prometendo muita originalidade e experiência de consumo gamificada, algo nunca antes oferecido para seus clientes. É como se elas apostassem em uma narrativa distante e desconectada de que são na realidade. No mundo físico a performance não é um jogo e lidamos com fatos reais que problematizam questões como racismo, trabalho escravo, plágio, greenwashing, falta de transparência, entre tantas outras cobradas por uma audiência que tem voz e sofre as consequências diretas dos atos das marcas.
Será que no Metaverso não teremos crimes hediondos e as marcas vão alcançar a redenção? Um mundo virtual organizado apaga os erros do mundo real? Penso em como o afã de explorar um universo digital fictício (mas com investimento muito real) pode soar aviltante enquanto logo ali na esquina há problemas de ordem básica como a insegurança alimentar, a extrema pobreza, a necropolítica e a desigualdade social. Os projetos de mundos físicos e virtuais podem andar em paralelo? Sem dúvida. Mas se a coisa vingar, se o dinheiro e a Economia da Atenção realmente forem para o lado de lá, qual universo vocês acham que estará em segundo plano quando o assunto for investimento de marca? Qual oferecerá menos riscos?
Carla Knoplech é jornalista, fundadora da agência Forrest, de conteúdo e influência digital, consultora e professora