Todos os Santos
Em uma caminhada atenta pela Rua José Bonifácio é possível visualizar toda a evolução histórica, social e urbanística do subúrbio de classe média por Pedro Paulo Bastos Minúsculo em tamanho e ignorado por muitos cariocas, mas badaladíssimo na nossa literatura, o bairro de Todos os Santos é proprietário de poucos logradouros entre o […]
Em uma caminhada atenta pela Rua José Bonifácio é possível visualizar toda a evolução histórica, social e urbanística do subúrbio de classe média
por Pedro Paulo Bastos
Minúsculo em tamanho e ignorado por muitos cariocas, mas badaladíssimo na nossa literatura, o bairro de Todos os Santos é proprietário de poucos logradouros entre o Méier e o Engenho de Dentro. Está bem ao lado de um dos maiores templos do consumo do subúrbio, o Norte Shopping. Mesmo com limites geográficos questionáveis, seus detalhes históricos ainda são bastante presentes pelas ruas. Bom… “presentes” naquele estilo brasileiro de ser, já em avançado processo de descaracterização e abandono. Porém, uma olhar cuidadoso por Todos os Santos pode encantar, principalmente se você conhecer bem a obra de Lima Barreto (1881-1922), uma das melhores referências em literatura suburbana. Na suas crônicas e romances, ele é excelente ao descrever a rotina de Todos os Santos e arredores, suas ruas e particularidades. Tudo numa forma bem crítica, o que o afasta daquela visão romântica do Rio de outrora.
Foi nesse embalo que eu percorri a Rua José Bonifácio, a principal da região, que começa na antiga Avenida Suburbana e termina na Rua Arquias Cordeiro, já de frente para os trilhos ferroviários. Por lá tem muito sobrado antigo, desses em que se inseria o ano de construção no topo enfeitado de desenhos e símbolos. A leitura prévia de crônicas e romances de Lima Barreto contribuiu para que eu pudesse recriar a paisagem da Rua José Bonifácio naquele tempo, no início do século passado, época de grandes avanços para a cidade, em todas as esferas. Além disso, a essência do texto de Lima Barreto sobre essa rua ainda é muito aplicável na contemporaneidade. A perspectiva dele sobre o dia-a-dia e o comportamento das famílias de Todos os Santos não mudou muito – pelo menos essa foi a minha sensação. Os botecos, por exemplo, maior símbolo de reunião social, ainda são bastante presentes.
A lástima é que muito desses sobrados sofreram intervenções cruéis ao longo do último século. Uns foram readaptados para novas serventias, outros estão abandonados. E muitos deles devem ter sido postos abaixo, tendo em vista que a paisagem da Rua José Bonifácio é muito fragmentada, heterogênea. É uma mistura de estilos arquitetônicos que traduz bem a evolução histórica, social e urbanística do subúrbio. A identificação dessa evolução é meio complicada de condensar num único comentário; é preciso caminhar, observando cada detalhe…
Os sobrados marcam o início de tudo – ou pelo menos do que restou de antigo ali. Na esquina com a Rua Odorico Mendes, uma casa (acho que é de uso comercial, mas estava fechada) expõe o ano de 1897 na fachada, embaixo do que parece ser um ornamento em homenagem à república. No meio disso, muitas residências com imagens e símbolos religiosos exibidos no topo. Vale lembrar que muitas desses imóveis, como falei anteriormente, aparentemente dividiram-se para abrigar pequenos comércios, tais como chaveiros, bazares, papelarias, padarias, igrejas, auto-escolas… Comércio de bastante apelo regional. A depredação, como as pichações, lhes parece ser uma das piores inimigas. Sucessivos a essas casas da década de 30/40, aparecem já os edifícios da década de 70 – mais simplórios, sem grandes atrativos estéticos -, o que evidencia o adensamento populacional do bairro.
Por outro lado, existem uns clarões na José Bonifácio que ofuscam todo o seu entorno: a nova faceta do mercado imobiliário. Essa parte da zona norte do Rio tem grande potencial de crescimento em função do índice de renda per capita dos moradores ser superior à média do subúrbio como um todo. Logo, grandes condomínios de edifícios já se instalaram por lá e a tendência é que cada vez mais eles ocupem os lugares dos imóveis mais antigos e abandonados. Isso é bem interessante porque o estereótipo do subúrbio é o de lugar sujo, velho, abandonado, e a construção a todo vapor desse tipo de prédios promete modificar bastante a sua paisagem de pouquinho em pouquinho. Essa mistura de estilos já pode ser observada.
O caráter familiar da rua principal de Todos os Santos é reforçado pela presença de casais sozinhos ou com seus filhos nas padarias e calçadas. Aliás, a padaria parece estar para a família da mesma forma que o boteco está para o gaiato. As imagens são marcantes: a esposa e o marido estão por lá à escolha do frango assado do almoço, que roda naquele grande forno-vitrine, enquanto o(s) filho(s) ou o(s) neto(s) se debruça(m) na geladeira da Kibon para escolher o picolé que mais lhe(s) apetece. No boteco ao lado, tios-e-vovôs discutem calorosamente sobre o Flamengo acompanhados de muita cerveja, TV ligada e jornal debaixo do braço. Os salões de beleza também são bons pontos de encontro no bairro. A despedida entre a freguesa e a cabeleireira por vezes se expande para a rua, sempre em tom animado, característico de dia de sábado.
Todos os Santos é o típico bairro suburbano de classe média. Um pouco maltratado, mas muito bem consolidado nas suas raízes. Ainda que a paisagem tenda a mudar com os novos edifícios mordernosos, é bem difícil da sua essência se esvair; pelo contrário, continua com grandes chances de permanecer equivalente à dos tempos de Lima Barreto. Nada mau para a preservação da nossa história e cultura urbana…
Para ver mais fotos da Rua José Bonifácio, visite o grupo do As Ruas do Rio no Facebook. Aproveite para dar o seu “curtir” e ficar por dentro das atualizações do blog! Obrigado!