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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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No teatro XP canta uma diva: Fernanda Montenegro

O diretor descreve as emoções operísticas de escutar a atriz Fernanda Montenegro valsar ao som das palavras de Nelson Rodrigues, em dueto lírico

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Atualizado em 9 ago 2022, 17h18 - Publicado em 9 ago 2022, 10h35

Há vezes em que o teatro e a ópera encontram-se — e não são poucas. Porém, em raras oportunidades os dois gêneros são unidos com tanta doçura e majestade como pelas mãos de Fernanda Montenegro. Essa é a crônica de uma noite em companhia de ambos ; não crítica: agradecimento às palavras de Nelson Rodrigues invocadas por Fernanda no espetáculo “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, no Teatro XP Investimentos, no Jockey.

Quando eu era pequeno (e isso lá se vão alguns verões cariocas), minha escola nos levava anualmente para assistir uma peça no Teatro do Jockey. Não tenho a mais vaga ideia do que acontecia no palco, mas lembro que distribuíam barras de chocolate branco (!) ao final (hoje, me pergunto se esse ‘chocolate sem chocolate’ é lembrança ou trauma). Verdade seja dita, se não morremos de bala Soft ou Tang é porque criamos anticorpos. O Teatro do Jockey ficou igualmente na memória, e lembro que tinha ares de galpão. Voltei àquele espaço muitas vezes depois, e ele sempre diferente. De todas as suas versões de palco/platéia, houve uma que era multi-funcional e super interessante. Agora está um teatro ‘chique’ instalado, como nunca encontrei e que dá gosto de ver ali. Toda aquela área do Jockey parece que está ganhando nova vida. Foi um bom retorno, apesar da falta que fez — nenhuma — o chocolate branco.

Fernanda abre sua conversa com um bate-papo que parece ser um improviso sobre suas memórias pessoais de Nelson Rodrigues. Lêdo engano: nada ali é improviso, tudo é arte. Se parece coisa simples ou uma conversa despretensiosa de bastidor, em verdade, é ali que a máquina do tempo abre suas portas. “Nelson era louco pela ópera italiana, pelo melodrama…. muitas vezes trabalhava escutando árias”, ela diz. A gente pensa que é uma frase, mas em verdade é um encantamento de sacerdotisa, digna da “Casta diva”, de Bellini. E é também a deixa para o som da voz de Plácido Domingo ecoar pela sala cantando a ária “Vesti la giubba” da ópera “Os Palhaços”, de Leoncavallo.

Curiosa e sábia a escolha: o prólogo de “I Pagliacci” é quase um manifesto desse movimento verista que fulminou a ópera do final do século XIX e princípio do XX, o melodrama de sangue e suor. Foi nessa escola que o realismo de Zola, encontrou verdadeiro eco na ópera. “Somos seres humanos de carne e osso que, órfãos neste mundo, respiramos o mesmo ar que vocês”, canta o palhaço Tonio. Se Carmen abriu o caminho para personagens mais reais, em 1875, foi com as obras do verismo que subiram ao palco “gente como a gente”. Nelson, nos anos 1940, fez seus personagens falarem “como a gente”; não com o jeito empolado do português castiço, mas sim com a fala urbana do Rio de Janeiro, captada pelos ouvidos atentos do repórter Nelson Rodrigues.

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E quando a voz de Domingo cala — “ri, palhaço, do teu amor estilhaçado; ri, da dor, que envenena o teu coração…” — vem uma outra Fernanda, com uma voz mais grave. Se há vezes em que o teatro e a palavra sozinhos fazem milagres, esta é uma dela, quando a voz de uma maga entra em cena. Nossa escuta entra em transe.

Os trechos escolhidos são plenos do melhor da genialidade de Nelson Rodrigues. Há todas as frases que conhecemos, as tiradas geniais e as junções de palavras e imagens que de tão óbvias, são ululantes. Mesmo quem já leu livro que deu origem à peça, compilado por Sonia Rodrigues, filha de Nelson, redescobre aquelas cenas na voz de Fernanda. E surge também um Nelson que Fernanda conheceu e que não era tão reacionário como muitos pintam, nem tão pornográfico como diz a lenda. O autor explica-se, e dessas palavras surge a visão de que o verdadeiro progressista é aquele ávido por conhecimento e que a educação e cultura nos fazem mais humanos. Na voz da grande dama do teatro brasileiro tudo é compreendido e tudo é simples e elegante. São duas horas que fogem e nas quais queria ter anotado vários momentos; mas temi o sacrilégio. Ver o espetáculo e comprar esse livro devia ser parte de alguma cesta básica.

Ao final, a ópera que foi a vida de Nelson Rodrigues triunfa (e com ela sua inteligência)! É Pavarotti que canta a estrofe final da célebre ária “Nessum dorma” da “Turandot”, de Puccini: “ao amanhecer, vencerei! Vencerei!!”. É certamente dessa vitória, a do retorno ao teatro presencial após à pandemia, que Fernanda Montenegro fala em seu agradecimento ao público. Vale buscar na internet todo seu discurso, especialmente por sua defesa da educação e da cultura. Aos 92 anos ela divide conosco a responsabilidade de manter o Brasil melhor. Goethe escreveu: “O que reluz nasce para o momento, / O que é genuíno permanece intacto para a posteridade” („Was glänzt, ist für den Augenblick geboren, / Das Echte bleibt der Nachwelt unverloren.“)

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Podemos dizer que 8 entre 10 óperas foram, antes, teatro de prosa. A Dama das Camélias virou La Traviata; Le Barbier de Séville e Les Noces de Figaro de Beaumarchais viraram, respectivamente, O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, e As Bodas de Figaro, de Mozart; a Tosca de Sardou virou Tosca de Puccini. O compositor Alberto Nepomuceno, já nos anos 1900, dizia: “Não tem pátria um povo que não canta em sua própria língua.” Nas últimas décadas o Brasil pôde escutar, entre outras, novas óperas baseadas em obras tão distintas como O Caixeiro da Taverna, de Martins Pena, ou Navalha na Carne, de Plinio Marcos. A espetacular ópera O Anjo Negro, permanece como única tentativa de “devolver” o teatro de Nelson à sua gênese operística. Quando teremos mais?

 

André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ

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