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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Dois casamentos e um funeral

O que faz uma performance historicamente informada: apego ao original ou respeito ao tempo em que vivemos? 

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Atualizado em 3 jul 2022, 18h07 - Publicado em 3 jul 2022, 13h57

Uma frase racista dita há mais de um século, permanece racista? Ir à ópera pode realmente ser considerado algo “de elite” ainda em nossos dias? Essas duas questões marcaram o noticiário internacional na última semana. De um lado, o veterano maestro italiano Riccardo Muti abriu fogo estilhaçando o politicamente correto; de outro, uma polêmica instaurou-se no parlamento britânico quando uma deputada trabalhista foi acusada de elitismo ao ir à opera. Por partes.

A pedra no sapato do maestro italiano, chutada vidraça adentro da cultura do cancelamento, acontece logo no primeiro ato da ópera O Baile de Máscaras, de Verdi: um juiz que tem ares de “vilão”, chega e pede a condenação ao exílio de uma mulher, uma vidente. Chama-se Ulrica (ou Madame Arvidson, dependendo da versão), e é famosa por prever o futuro. Em suas consultas espirituais invoca o “rei do abismo”. O juiz, personagem menor e sem grande relevância na trama, pede ao governador de Boston que a “bruxa” seja banida, descrevendo-a como sendo “dell’immondo sangue dei negri” (“do sangue imundo dos negros” — lamento traduzir). Eis a batata quente que gerou a polêmica.

A questão desta frase incômoda — aliás, inaceitável — já vem levantando discussões há um bom tempo. Em maio passado, no Teatro Alla Scala de Milão, os dois versos do libreto de Antonio Somma foram reescritos para eliminar a passagem que não deveria mais ser cantada assim hoje: cantou-se “del demomio maga servile” (mesma solução foi utilizada na última versão apresentada no Municipal do Rio, aquela de 2018, que acabou nas manchetes dos jornais por suspeitas de superfaturamento e desvio de verba). Em minha própria experiência já testemunhei reclamações contra a frase e tentativas de mudança: quando em 2005 remontei a produção desta ópera no Covent Garden de Londres, o maestro pediu que a palavra “negri” fosse alterada para outra versão do texto original que dizia “gitano” (ofender ao povo cigano parecia menos ofensivo?) Na última semana a polêmica voltou à tona, e com força, em Chicago. Na cidade cuja prefeita atual, Lori Lightfoot, é conhecida por posições às vezes radicais (já mais de uma vez recusou-se a dar entrevista para jornalistas brancos), está sediada a célebre Orquestra Sinfônica de Chicago (CSO), regida pelo não menos celebre maestro Riccardo Muti. Desde 2013, ano do bicentenário do nascimento de Verdi, seu ‘ compositor-fetiche’, a orquestra apresenta um ciclo de óperas do compositor em versão de concerto; ciclo este que culminou este ano com Un Ballo in Maschera e coincide com o fim dos doze anos de Muti maestro titular do grupo. O enorme feito artístico vinha sendo recebido com um sucesso igualmente grande. Aos 80 anos e celebrado também por ser um artista pouco aberto à concessões ou deixar-se ditar sobre o que fazer, Muti recusou-se veementemente a aceitar qualquer revisão do libreto que retirasse a frase considerado ofensiva aos afro-descendentes. Nem se falou que a ópera retrata um casamento fracassado em que a mulher é meio que injustamente acusada de adultério e ameaçam tirar-lhe o direito de ver seu único filho ou que o protagonista (um governante generoso e amado pelo povo) é assassinado por conspiradores, e a polêmica já estava armada.

Em entrevista publicada no ultimo dia 24 de junho pelo jornal italiano Corriere della Sera, o Maestro explicou seus motivos para ter-se recusado a retirar ou alterar a frase infame — e isso apesar de sofrer pressão de algumas autoridades e dos próprios músicos da orquestra. Segundo Muti, o juiz em questão é desenhado como um tipo ignorante e pouco simpático, tanto ao público quanto a outros personagens na mesma cena da ópera, que inclusive defendem Ulrica; a frase não pode ser entendida como exprimindo um pensamento racista de Verdi que, diferente de Wagner (abertamente anti-semita, entre outras falhas de caráter) não traz em sua biografia nada que o defina como dado a preconceitos, pelo contrário, e arremata: “Da América, nós importamos principalmente coisas negativas. […] tem que se ter cuidado para não dizer isso e aquilo, mesmo referências vagas podem fazer você desconfiar, ofender e ser usado contra você.  Sou muito contra os teatros que maquiam e mudam as palavras dos libretos.  Você não pode mudar a história, ela deve ser mantida em sua essência, para melhor ou para pior, para que as próximas gerações possam saber.  Não ajudamos os jovens dessa forma, pelo contrário...”. Há muito que ponderar na atitude do maestro italiano; intransigências e questões de geracão à parte, o contexto em que a frase é dita e por quem é dita são elementos tão essenciais ao julgamento quanto à sensibilidade de pessoas que podem sentir-se ofendidas, grupos oprimidos e há séculos desvalorizadas. O respeitado e polêmico critico e musicólogo Taruskin, falecido semana passada, dizia que “ser a verdadeira voz de seu tempo é cerca de 40.000 vezes mais vital e importante do que ser a voz assumida da história”, e concluiu: “Ser o meio expressivo de sua própria época  é um objetivo muito mais valioso do que a verossimilhança histórica.  O que é verossimilhança, afinal, senão correção?  E a correção é a mais insignificante das virtudes.  É algo para exigir dos alunos, não dos artistas.

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O que pensar? O fato é que parece estar aberta a temporada de caça não somente às bruxas como à cultura do cancelamento e do “shaming”. Essa micro-polêmica com Muti acontece ao mesmo tempo em que ópera apareceu no foco dos debates no parlamento britânico. A vice-líder do Partido Trabalhista, Angela Rayner, foi ridicularizada pelo vice-primeiro-ministro, Dominic Raab, do partido conservador, por assistir a uma apresentação de As Bodas de Fígaro, de Mozart, no Festival de Glyndebourne. Ao atacar, Raab chamava a colega do partido de oposição de “socialista champanhe” por assistir a uma ópera durante as greves ferroviárias; uma argumentação tão triste quanto constrangedora e misógina. Como a própria Rayner ressaltou em sua resposta, o vice-primeiro-ministro deveria rever seu esnobismo e atualizar-se um pouco sobre o que é a ópera.  No caso de As Bodas de Fígaro em particular, trata-se, a grosso modo, da história de uma mulher da classe trabalhadora que leva a melhor sobre o patrão aristocrata, privilegiado, e que tenda assediá-la sexualmente. Mais importante ainda, com uma quase centenária reputação de excelência, Glyndebourne não depende de subsídios públicos e, apesar das pessoas vestidas com smoking fazendo piquenique e bebendo champanhe, o festival oferece trabalho para centenas de artistas freelance e tem um excelente programa de acesso e estímulo às Artes.  É incrivelmente lamentável apontar o dedo acusadoramente com a palavra elitismo voltada às artes dessa maneira. É totalmente burro (ou mal intencionado) tentar envergonhar um político que resolva ir à ópera, pagando do seu próprio bolso o ingresso de £62 (o que não é alto para padrões do Reino Unido) —  essa reação seria a mesma se fosse a um torneio de tênis, uma partida de futebol ou a um evento ‘pop’?

Ao mesmo tempo que é importante ver a ópera no centro de discussões urgentes de nosso tempo, é frustrante que sejam revividos os ataques elitistas às artes quando toda uma indústria (e as casas de ópera em particular) estão tentando ressurgir da pandemia e fazendo o máximo para alcançar públicos novos e diversos. Taruskin disse certa vez que “ a arte não é inocente (e) pode causar danos”: da mesma forma, e ainda mais, pode ser danosa a irresponsabilidade política. Em tempo: o mundo despede-se de Peter Brook um grande homem de teatro que, aliás, meio que começou na ópera: já em 1947 ele encenava uma versão da ópera Salomé (tendo Salvador Dali como cenógrafo!), muito antes de sua famosa versão condensada da ópera Carmen. Evoé, mestre de Apolo e Dionísio, que os céus sejam agora teu espaço.

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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