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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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A força dos clássicos derrete o coração do verão carioca

Nada melhor do que o teatro da antigüidade clássica para discutir o que é dito erudito...

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
1 abr 2023, 22h12

Nada mais erudito do que a Antiguidade Clássica, diriam. E nada mais contemporâneo que ela, eu afirmo. Se por um lado, o verão no Rio pode significar a hibernação (quase) total da música de concerto, ópera e dança…por outro, há sempre belas surpresas no mundo do teatro de prosa. Foi no inferno deste verão que assisti, no espaço de um mês, a duas montagens para lá de felizes: Julius Caesar e Antígona. E viva os clássicos — pois mostram como pode ser interessante investigar o que nos é imposto como sendo “erudito”, através dos gregos, romanos e seus trágicos vizinhos.

É sempre a mesma coisa. Por que uma cidade com tantos turistas diminui tanto sua programação cultural em Janeiro, Fevereiro e boa parte março? Ei, nem só do sol da praia, do bom samba e da cerveja gelada vive o carioca e seus turistas!! O fato é que passado mais um verão carioca — e dos brabos — volto aquele lugar onde, anualmente, não canso de achar esse vazio na programação cultural um bocado incompreensível (e não sou o único). Não haveria lugar para espetáculos ao livre, festivais de verão e afins? Há uns vinte anos, o Theatro Municipal estendeu sua temporada verão adentro, com a opereta O Morcego, reunindo solistas, coro orquestra e balé: foi um baita sucesso. Turistas que passam pela cidade visitam não somente o mar, os bares e restaurantes mas também consomem cultura nos museus cariocas e, por sorte, também em vários teatros do Rio de Janeiro, que não param. Mas eu saio do meu caminho, que era falar de duas montagens cariocas de clássicos.

Antes, como todos os caminhos levam a Roma (ou a Tebas), vale um pequeno desvio. Há tempo, escapando do verão carioca, caí, por assim dizer, “de paraquedas” na estréia da ópera Giulio Cesare, de Handel, em plena e fria Amsterdã. Na versão ópera, a trama não é dada ao mesmo filosofar que a sensível versão da Cia.dos Atores para a obra homônima (esta última, inspirada no texto de Shakespeare). Handel, mestre do barroco, usa a chegada de Cesar ao Egito e seu encontro amoroso com Cleopatra para um desfile de árias de tirar o fôlego — literalmente. São quase todas muito difíceis de se cantar e, para dar certo, o processo tem de reunir um grande elenco. Isso a capital da Holanda tinha, só esqueceram de avisar ao encenador espanhol, Calixto Bieto, mestre em criar espetáculos escandalosos (por vezes geniais, outras gratuitamente assim), que ele deveria efetivamente dirigir algo mais do que a entrada e saída dos artistas. Verdade seja dita, não faltou a (tola) estética do vídeo clipe e um final onde os protagonistas presenteavam-se privadas de ouro… (uma piadinha com o gosto árabe?). Amsterdã e Rio de Janeiro tinham em comum o título e o elenco brilhante da Cia. do Atores (e convidados, acho); se na Holanda dinheiro é que não faltava, a montagem carioca esbanjava inteligência e criatividade (totalmente diferente do “muito glacê para pouco bolo” europeu). Na época em que foi composta, no coração do período barroco, entre os séculos XVII e XVIII, a ópera Giulio Cesare era mais uma a utilizar-se da antiguidade como espelho para a sociedade contemporânea. Esses generais e soldados, deuses e semideuses, heróis e feiticeiras eram uma forma de recontar aquela sociedade aristocrática (seus valores e sua moral); com o teatro de Shakespeare a coisa não era muito diferente. Nesta compreensão — rara — estava um dos grandes acertos do que foi feito por Gustavo Gasparani e todos os seus excelentes parceiros da Cia. dos Atores (espero que me perdoem por não nomear a cada um) em Julius Caesar – Vidas paralelas. Se no teatro da Oi Futuro, acolhedor mas pequeno, certamente muita gente ficou de fora querendo assistir, o objetivo dessa crônica é celebrar a possibilidade do espetáculo voltar em breve — dizem. É correr para garantir um ingresso assim que a bilheteria abrir.

Assim como o herói Julius Caesar, Antigona faz parte desses gregos e romanos que viveram às margem da vida; são heróis porque cumpriram um destino que nós, mortais menos corajosos, não teríamos enfrentado. Uma lei maior que a dos humanos guiava-os para o que era certo. É sobre ela a peça que acaba de reestrear no Teatro Poeira — um rio de acertos. Num ambiente cênico inteligente, com uma luz e um figurinos muito afinados com a proposta, entrou em cena uma atriz em estado de graça; ou melhor: uma Andrea Beltrão em estado de Dionísio.

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Custa imaginar que um espetáculo que oferece tanto ao espectador dure apenas uma hora — da mesma forma que dói pensar que, em Amsterdã, fiquei mais de três horas assistindo uma desperdício da melhor música barroca, de grande cantores e de dinheiro: se Andrea Beltrão é desses atores que conseguem pegar cada um do público pela mão e levar numa viagem, nem todos os caros painéis de LED e piadinhas infames conseguiram me fazer esquecer a noite chuvosa na capital holandesa e me levar ao Egito. Esse é o poder de uma atriz em estado de Dionísio, repito. Se havia alguém ali em busca de uma artista especialmente famosa por suas interpretações cômicas (uma ou outra risada deslocada no início faz pensar que esperavam ver “Antígona Ilimitada”), acho que acabaram entrando na mais vibrante catequese do exercício teatral. E essa catarse também acontecia com as vidas paralelas de Juluis Cesar, provando que, se havia uma disputa entre o popular e o “erudito”, suspeito que a antiguidade clássica tenha levado a melhor — de vez em quando testemunhar algo assim, aquece os corações mesmo em pleno verão carioca! Como canta Cesare na ópera: “vai silencioso e escondido o astuto caçador, quando está ávido em apanhar a caça“.

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ

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