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Por Analice Gigliotti, psiquiatra
Comportamento
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Will Smith e Chris Rock: quando o destempero esbofeteia o mau gosto

A maior comprovação que o episódio é lastimável do início ao fim é que os atores se arrependeram publicamente

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 1 abr 2022, 13h53 - Publicado em 1 abr 2022, 09h49

Era para ser uma noite de consagração. Depois de décadas esperando por este momento, tudo indicava que o ator Will Smith seria agraciado com o Oscar de Melhor Ator por sua performance de fato notável em “King Richard”. Mas tinha uma pedra no meio do caminho, como escreveu o poeta. O ator e comediante Chris Rock subiu ao palco e começou a deferir suas piadas ácidas, por vezes incomodas, sobre um ou outro ator na plateia, que sempre reage simulando aceitação, entre sorrisos amarelos.

Mas eis que Chris Rock apontou sua metralhadora giratória para Jada Smith, esposa de Will Smith. A apresentadora sofre há anos de alopecia, uma doença que provoca a perda de cabelos. Jada optou por raspar a cabeça e ir careca à cerimônia do prêmio. Foi terreno farto para Rock soltar que ela estrelaria a continuação do filme “Até o limite da honra”, cuja protagonista é Demi Moore, de cabeça raspada. Nova onda de sorrisos amarelos na plateia. Jada balançou a cabeça lamentando a piada. Foi o suficiente para Will Smith levantar-se, caminhar até o palco e dar um ruidoso tapa na cara do comediante.

Por alguns segundos, a audiencia planetária do Oscar achou que era um número combinado. Mas ao sentar-se em seu lugar novamente, Smith ainda gritou duas vezes: “Tire o nome da minha mulher da porra da sua boca!”. Foi quando os milhões de espectadores entenderam que o tabefe havia fugido do roteiro. Daí em diante, o mundo não falou de outro assunto – abafando a conquista do Oscar por Will Smith, minutos depois, e seu discurso atrapalhado, misturando gratidão pelo prêmio e arrependimento pelo gesto impulsivo.

Passados alguns dias, com a poeira do calor das emoções já assentada, fica latente que o episódio é uma lastimável sucessão de erros. A começar pela “piada” de Chris Rock. Humorista pode tudo? Sim, pode. O humor pressupõe o terreno da liberdade. Mas exige, em contrapartida, o bom gosto e inteligência do humorista. Foi o que faltou a Chris Rock. Pode fazer pilhéria em cima de doença? Pode, se a doença é sua. Arrancar gargalhadas por causa da doença dos outros não é engraçado, é perverso. Basta olhar para os grandes humoristas – alguns dos maiores do mundo. Por décadas, o cearense Chico Anysio fez rir dos nordestinos e Jô Soares dos gordos. Faziam do autodeboche material farto, extraíam graça das suas próprias condições. Entendeu, Chris Rock?

Will Smith, por sua vez, mostrou um destempero raras vezes testemunhado na televisão ao vivo. Ele não defendeu a esposa de insultos em uma briga de trânsito. Ela foi alvo de uma piada infeliz, mas por um profissional, em cima de um palco. Será que não haveria forma mais elegante de Smith se posicionar? Ir embora da festa? Recusar-se a receber o prêmio? Fazer um discurso inflamado em favor das vítimas da alopecia e de todas as outras doenças que deixam as pessoas carecas?

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Pode-se supor que a piada de Chris Rock apertou algum “calo” de Will Smith. O que estaria, na verdade, por trás do seu ato? Seu gesto é o retrato da falta momentânea de sangue frio e inteligência emocional ou a ponta do iceberg de um transtorno que leva à impulsividade? 

Por fim, o tapa. Sou daquelas que acredita que uma humilhação verbal, mesmo que travestida de piada ruim, não justifica uma agressão física. Esbofetear não é adequado mas, acima de tudo, não é normal. Não se pode normalizer a violência. Pensando em nível metafórico, quantas “piadas ruins” engolimos todos os dias sem reagir com tapas – reais ou também metafóricos? Se todos respondêssemos com a mesma agressividade de Will Smith, em que mundo estaríamos? Seria a volta à barbárie.

A maior comprovação que o episódio é lastimável do início ao fim é que os atores deram declarações públicas de arrependimento. Tarde demais. Enquanto viverem, Will Smith e Chris Rock serão lembrados por um fato vergonhoso em uma noite que prometia apenas a glória. Isso sim parece piada

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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