Histórias de amor e terapia: a inteligência artificial ocupa novos espaços
O que mais estimula o crescimento dessas modalidades de uso da I.A. é a falta de necessidade de interação com outro humano
Parece coisa de filme. E foi. Em 2013, o cineasta Spike Jonze filmou “Her”, a história de um homem (Joaquin Phoenix) que se apaixona pela voz do sistema operacional do seu computador (Scarlett Johansson). Há pouco mais de uma década, quando o filme foi feito, parecia coisa de ficção científica. Mas a realidade tem sido mais veloz do que pode supor a imaginação.
As redes sociais tem trazido cada vez mais relatos – especialmente de jovens – que afirmam estar em um relacionamento sério com a inteligência artificial. Pode parecer estranho para quem tem mais idade (e um pouco mais de experiência na vida), mas atualmente existem mais de 100 aplicativos que disponibilizam companheiros românticos e sexuais com diversas opções de personalização, incluindo características físicas e de personalidade.
Conhecidos como chatbots, esses aplicativos são surpreendentemente realistas, se adaptam ao usuário com rapidez e tem interação fácil. Resultado: são capazes de manter conversas, constroem e oferecem respostas a partir dos temas de interesse dos usuários.
Com o avanço da tecnologia, esses recursos estão perturbadoramente cada vez mais assemelhados aos humanos, o que tem levado pessoas a criarem vínculos emocionais com os aplicativos. Podemos aventar uma série de razões para que o filme “Her” esteja se tornando realidade. A vida online deixou muita gente isolada, as decepções amorosas e o sentimento de solidão são crescentes, bem como a pouca maleabilidade para ceder ou aceitar a diferença. Ou seja: acaba sendo mais fácil se relacionar com a máquina do que com humanos – ainda mais se essa mesma máquina se comporta como tal.
Essa tem sido a razão também para outra bizarrice que tem sido mostrada nas redes: pessoas que trocaram a psicoterapia com seres humanos para se “tratarem” com a inteligência artificial. Estes jovens afirmam que a I.A. está sempre disponível e tem sempre ótimos conselhos a dar. O que eles desconhecem é que ela não está orientando baseado num processo de escuta, mas vasculhando uma infinidade de dados, baseado em algoritmos, para entregar exatamente o que o “paciente” quer ouvir. Sem entrar no mérito que conceitos básicos imprescindíveis, como senso crítico (sobre os outros e sobre si mesmo), silêncios, e aceitação do contraditório passam a ser escanteados.
A inteligência artificial já trouxe conquistas sensacionais em diversas áreas, da telecomunicação à medicina. No entanto, não deixa de ser com um acerto susto que observo seus novos usos. Fico curiosa para observar até onde irá o uso que o ser humano dará à I.A. na tentativa, infelizmente cada vez mais frequente, de evitar outro ser humano.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.