Brasil carrega o vergonhoso título do país que mais mata LGBT+ no mundo
Há 14 anos, Brasil fica em primeiro lugar na lista. Em 2022, foram 273 vítimas
A quarta-feira da semana passada, 17 de maio, foi marcada pelo Dia Internacional contra a LGBTfobia. Geralmente, efemérides como esta servem para se olhar para trás, ver o caminho trilhado e celebrar conquistas. Porém, uma nova pesquisa, divulgada no Dossiê Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, mostra que apesar de alguns avanços, como a conquista da União Civil entre pessoas do mesmo sexo, que completou 10 anos, o público LGBTQIA+ ainda tem muito a temer.
No total, foram 273 vítimas de crimes de identidade de gênero ou sexual no Brasil. Ou seja, dois assassinatos de pessoas LGBT+ a cada três dias em 2022. As mortes são, principalmente, de mulheres trans e travestis: 159 ocorrências (58%). Homens gays vem em seguida, com 97 óbitos (35% dos casos). As mortes, em sua grande maioria, se dão em circunstâncias violentas, com armas de fogo, esfaqueamento, espancamento e apedrejamento. Outro ponto que chama atenção é que 49% dos casos acontecem em lugares públicos. Os registros de violência acontecem na região Nordeste (118 mortes), seguido por Sudeste (71 mortes) e Centro-Oeste (37 mortes).
Os tristes números, que conferem ao Brasil o vergonhoso título de país que mais mata a comunidade LGBTI+ no mundo pelo 14º ano seguido, faz pensar uma série de questões não apenas sobre esse grupo social específico, mas sobre a sociedade brasileira como um todo.
O primeiro ponto que chama a minha atenção é o nível de violência que se pratica hoje no país. A cultura do ódio e da violência, tão disseminada nos últimos anos, deixa rastros em todos os tecidos sociais. Sob o frágil argumento da liberdade, permitiu-se a naturalização de diversos signos de violência, como a posse de arma e clubes de tiros, porém, sem a devida (e óbvia) defesa do alcance de dano que essa cultura pode atingir. Resultado: vivemos uma espécie de faroeste, com enorme circulação de armas ilegais e despreparo de quem as tem nas mãos.
Outro dado que chama a minha atenção é o público que recebe tamanha carga de ataques. É de se pensar, afinal: por que os LGBTI+ sofrem de tanta perseguição? A resposta que me vem à mente é que se trata de uma comunidade que dá a cara, que não se esconde, que não tem medo de mostrar-se como é.
Isso nos leva, diretamente, ao terceiro ponto que me interessa: por que pessoas corajosas, que se mostram como são, que cada vez mais se recusam a se esconder e dominam grandes espaços de atenção da mídia – como a Pablo Vittar, Ludmilla e outros fenômenos pop -, por que essa comunidade incomoda tanto o status quo social? Única e exclusivamente porque são diferentes.
E aí chegamos, a meu ver, ao centro da questão, de onde derivam todas as outras: não somos uma sociedade educada para conviver com a diferença. Por muito tempo, não preparamos nossas crianças para a aceitação do que não se assemelha a você, seja pela classe social, pela raça, religião ou pela identidade de gênero. Por gerações, as famílias evitaram aborar assuntos que julgavam espinhosos, assim como as escolas. A conta nos é apresentada hoje: uma sociedade supostamente igualitária, mas atravessada por muitas particularidades rejeitadas pelas demais.
Não enxergo solução possível para tantos casos de violência que não passe pelos bancos escolares e conversas em família. É preciso ensinar – dentre tantas coisas – que todas as pessoas tem o direito de ser quem são, amarem quem quiserem e terem a identidade de gênero que desejam. Tratam-se de questões de foro íntimo, que em nada podem incomodar ou por em risco a existência do outro.
Se o Brasil é um país violento, é ainda mais com a comunidade LGBTI+. A única maneira possível de ter essa situação revertida é pela educação, dentro e fora de casa, para que finalmente se entenda que a diferença – qualquer diferença! – é a riqueza de uma sociedade.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.