Carol Barcellos inspira as mães da Maré: “A gente se reencontra correndo”
No Dia das Mães, conversamos com a jornalista e mulheres que se apoiam para correr no projeto Destemidas, no Complexo da Maré, zona norte do Rio

É cedo demais, ou tarde demais. Elas estão cansadas, atoladas de demandas. E ainda assim, vão. Calçam os tênis, respiram fundo e correm. Não por performance, mas por saúde — física e mental — e, sobretudo, por autoestima. Criado pela jornalista e maratonista Carol Barcellos, o projeto Destemidas transforma, há oito anos, a corrida em um espaço de liberdade e força para 42 mulheres do Complexo da Maré. “Todo fim de ano, a gente tem um encontro para olhar para trás e ver o que conquistou. Quando ouço os relatos, quando vejo a transformação, tenho certeza: vale a pena”, orgulha-se Carol.

Para ela, ver a filha Júlia, de 11 anos, crescer cercada por esse exemplo é simbólico. “Quando minha filha completou um ano, corri a Maratona de Jerusalém. Foi simbólico. Meu tempo era restrito, entre trabalho, amamentação, rotina. A corrida me devolveu a mim. Me lembrou das minhas vontades, dos meus desejos”.
“A gente sempre volta melhor de uma corrida. Melhor para lidar com tudo, melhor para quem está com a gente” – Carol Barcellos
Também sou mãe (da Alice, 5 anos) — e compartilho com a Carol o desejo de retribuir ao esporte tudo o que ele me entrega. Neste Dia das Mães, conversei com ela e com duas mães “destemidas”: Kelvelene dos Santos – mais conhecida como Índia e mãe de Wesley Davi, 11, Kamili, 9, e Manuela, 5 – e Marcelly Vitória da Silva – mãe de Maria Laura, 3 – sobre como a corrida pode ser uma grande aliada na maternidade.
Mais que isso, um gesto de amor-próprio, de resistência e de recomeço.

“Se eu pudesse dar um conselho para uma mãe que acha que isso não é para ela, eu diria com certeza: correr é vida. É descobrir uma nova versão de si mesma”, destaca Marcelly.

Índia concorda — e vai além: a corrida é, sobretudo, pertencimento. “A corrida é diferente de qualquer outro esporte. Não é você contra alguém. É você com você mesma. Quando corro, me sinto empoderada. Me sinto forte. Literalmente, uma destemida”.
Correr exige mais do que pernas: é preciso rede de apoio
No dia a dia, o que impede muitas mulheres de correr é muito menos a falta de vontade e muito mais a sobrecarga da rotina. Por isso, o projeto inclui cuidadoras nos treinos, que deixam de ser um momento de ausência para se tornar um tempo de bem-estar compartilhado. “As cuidadoras levam brinquedos, livros, ficam com as crianças. Assim, as mães correm mais tranquilas, e as crianças também se divertem. Isso muda tudo. Cada uma tem sua realidade, sua rede de apoio — ou a falta dela. Nosso papel é acolher essa diversidade e tornar a corrida possível”, reflete Carol.
Para quem participa, o impacto vai muito além do físico. É o caso da Índia. “A primeira vez que calcei um tênis para correr foi quando comecei no projeto. Nunca gostei de correr, mas queria ser um exemplo para os meus filhos. Hoje, o projeto faz parte da minha vida. Não consigo viver sem correr. A gente precisa parar de pensar que não pode fazer algo porque tem filhos. A gente precisa fazer porque tem filhos. Eles merecem ver a gente bem, forte e feliz”, resume.

A culpa ainda vem — socialmente construída, silenciosamente imposta. Índia enfrentou julgamentos, mas conseguiu superar a culpa de cuidar de si.
“Já pensei em desistir várias vezes porque muita gente dizia que eu devia parar de praticar esporte e focar só nos filhos. Como se mulher tivesse que ser só dona de casa. Mas eu pensei: quero ser o exemplo deles. Quero que eles digam que a inspiração deles é a mãe. E está dando certo. Minha filha fez um trabalho na escola e me escolheu como inspiração” – Índia
“A gente não sabe a realidade de cada mulher. Mas eu sempre digo: para cuidar dos outros, a gente precisa cuidar da gente primeiro. Correr é uma forma de ensinar aos filhos que nosso corpo importa, que nosso bem-estar também tem lugar”, pontua Carol.
Quando a corrida reconstroi a identidade
Marcelly guarda com alegria a lembrança da sua primeira corrida. “Minha motivação era meu bem-estar. Controlar a respiração parecia impossível, e as dores no corpo me faziam duvidar. Mas com o tempo, meu corpo respondeu, minha autoestima cresceu, e minha vida mudou”, garante a jovem aprendiz administrativa.
Índia também viveu essa transformação. “Depois que tive minha terceira filha, já estava no projeto, e vi o quanto ele mudou minha cabeça. Correr me fez amadurecer mais como mãe, como mulher. Antes, com meus dois primeiros filhos, eu não tinha essa estrutura. A minha forma de viver a maternidade mudou”.
Ela lembra com emoção da sua primeira meia maratona. “Cheguei chorando, mas correndo. Que nem uma verdadeira destemida”. Marcelly também tem seu marco: “Na corrida ‘Correndo pelo Rio’, acordei determinada a bater meu melhor tempo. E consegui. A sensação de superação ficou gravada em mim”, recorda.
Por isso, para elas, correr virou um momento realmente precioso — e que transforma todo o resto. Parece simples, mas é profundo. “A corrida é um respiro no meio da corrida do dia a dia. Ali, você troca com outras mulheres, fala de você, lembra de você.
“Às vezes, a gente só precisa de um tempo para lembrar quem somos. Correr é isso: um espaço de individualidade, um momento só nosso” – Carol
Que sigamos como as Destemidas seguem, na corrida e na vida. Correndo. Respirando. Resistindo. Por elas, pelos nossos filhos, por todas que virão depois de nós.