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Espetáculo deprimente

Pesquisa realizada por VEJA RIO mostra que estamos longe de ser civilizados em plateias de teatro e cinema. E o uso indiscriminado do celular é o maior vilão

Por Rafael Teixeira
Atualizado em 2 jun 2017, 13h07 - Publicado em 21 Maio 2014, 16h40

Atire o primeiro celular quem jamais teve o desprazer de ouvir um desses aparelhos tocando durante uma sessão de teatro ou cinema. Ou quem nunca se sentiu incomodado pela luz emitida pelo telefone do vizinho em uma sala de espetáculos. Tal sujeito, se é que existe, pode se considerar uma espécie rara nas plateias cariocas. Por aqui, a recomendação de desligar o aparelho no momento em que as luzes se apagam é solenemente esnobada, assim como algumas regras básicas de comportamento, entre elas, não conversar em meio à apresentação nem fotografar o espetáculo. Não raro, tais episódios de falta de educação explícita acabam se desdobrando em ba­­te-bocas e conflitos. Há duas semanas, em uma exibição de dança, no Theatro Municipal, um homem e uma mulher trocaram sopapos porque ela insistia em usar o celular na sala. “Trata-se de um problema da nossa sociedade: as pessoas não se enxergam coexistindo com outras. E pior: quem reclama é que se torna o mal-educado da história”, diz o antropólogo Roberto DaMatta, especialista na análise dos maus modos brasileiros.

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Se topar com um brucutu na cadeira ao lado é um aborrecimento e tanto, para os atores, músicos e cantores que vislumbram essa figura do palco, trata-se de puro desrespeito. E são justamente os artistas que conhecem a fundo o problema. Foi a eles que VEJA RIO recorreu para dimensionar quanto a falta de educação é frequente entre nós. Nas duas últimas semanas, a revista ouviu 130 profissionais da área (veja a lista completa na pág. 40), e o resultado da enquete foi simplesmente constrangedor. Todos, sem exceção, disseram que já foram distraídos por alguém usando o telefone, seja trocando mensagens, seja navegando na internet, e também pelo toque do aparelho. Pouco mais da metade dos entrevistados disse que interrompeu apresentações por atitude inconveniente do público, e sete em cada dez declararam que esse tipo de embaraço ocorre pelo menos uma vez por semana nos espetáculos em que atuam. “Há pessoas que se esquecem de desligar o aparelho e, quando ele toca, ficam muito constrangidas. Nesses casos eu até me solidarizo. O problema é quando, voluntariamente, ficam usando o celular durante a sessão, uma situação muito mais banal do que se pensa”, diz Charles Fricks, ganhador do Prêmio Shell em 2012 pelo drama O Filho Eterno. Na pesquisa, 88% dos artistas se sentiram incomodados por pessoas fotografando ou filmando a exibição com seus aparelhos.

Os frequentadores contumazes das salas de espetáculos bem sabem que o celular é apenas a face mais luminosa e barulhenta de um traço comportamental que se manifesta de várias formas nos teatros e cinemas do Rio. Já é parte do folclore carioca a praga dos retardatários que procrastinam até o último segundo a entrada na sala e só o fazem quando as luzes se apagam, atrapalhando todos os outros que já estão sentados. Há as crianças que choram, seus pais que não se tocam e ainda o festival de ruídos vindos da plateia, de gente roncando a crises de tosse, passando pelo infernal abrir de pacotes de comida e guloseimas, seguido da sinfonia que acompanha o ato de comer em si. “Houve um dia em que tossiram tanto que, na hora dos agradecimentos, eu disse que desejava que eles melhorassem da gripe. O resto do público, a parte que não tossiu, aplaudiu”, conta Bruno Mazzeo, que recentemente apresentou o monólogo Sexo, Drogas e Rock’n’Roll. De fato, alguns episódios são tão inacreditáveis que parecem de fato piada ou parte da encenação para os mais desavisados. Recentemente, a atriz Letícia Isnard se viu diante de uma situação surreal durante uma encenação da comédia Como É Cruel Viver Assim, em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. “Uma senhora na primeira fila abriu um pote de margarina, que ela havia feito de marmita, pegou o garfo e a faca na bolsa e jantou ali mesmo”, conta.

As chances de prever e evitar situações esdrúxulas como alguém fazendo uma refeição na frente do palco são remotas, mas há medidas que podem reduzir o impacto de incômodos recorrentes, como é o caso dos celulares. No Teatro Sesc Ginástico, no Centro, a gravação de praxe que solicita que os aparelhos sejam desligados ganhou um adendo ? após uma pausa breve, a voz retorna para reforçar: “E aí, gente, já desligaram os celulares?”. De acordo com a rede Sesc, a iniciativa deve ser estendida em breve aos seus demais teatros na cidade. Também há exemplos desse tipo de iniciativa entre os cinemas: para capturar a atenção do público, a rede Kinoplex tem produzido vídeos com atores conhecidos, como Leandro Hassum, transmitindo o aviso. “É uma maneira lúdica e divertida de alertar sobre a utilização do telefone na sala”, diz Patrícia Cotta, gerente de marketing do circuito. Por vezes, é a produção, e não a sala, que se incumbe de criar uma advertência à parte. A atriz Beth Goulart lembra que, durante a temporada do monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector, antes do terceiro sinal, era reproduzida uma gravação em que seu pai, o ator Paulo Goulart, pedia três vezes ao público que desligasse os aparelhos. “O problema é que nem assim adiantava”, lamenta Beth.

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Sete atores contam situações esdrúxulas que já presenciaram ao encenar seus espetáculos na cidade

Diante da chateação generalizada que o mau comportamento provoca nas salas, espectadores e artistas se perguntam quais seriam as soluções para, se não resolver, pelo menos minimizar o problema. Multar os mal-educados é uma ideia, seus defensores afirmam que, à maneira do que ocorreu com a lei do Lixo Zero, a ameaça ao bolso inibiria o desrespeito ao resto do público e aos atores. O modelo para essa punição seria semelhante ao que vigora em Nova York, onde, desde 2003, uma lei baniu a utilização de telefones em salas de espetáculo de qualquer gênero, além de galerias e museus. A pena é de 50 dólares. O problema é que a regulamentação, além de difícil de ser aplicada, é muitas vezes desconhecida, VEJA RIO entrou em contato com cinco profissionais de teatro da Broad­way e nenhum deles sabia da existência da lei. Não à toa, uma busca na internet revela um sem-número de vídeos de espetáculos montados por lá. Em um deles, que se tornou famoso, o ator Hugh Jackman é flagrado em cena sendo interrompido por um toque de celular (além do dono do aparelho, diga-se, o próprio autor do vídeo contribuía para atrapalhar os demais espectadores). De todo modo, os teatros nova-iorquinos, assim como os do West End londrino, gozam de autonomia para, dentro de um critério de razoabilidade, coagir aqueles que insistem na atitude. O mesmo ocorre por aqui, mas a diferença de postura é gritante, alguém já viu um funcionário de teatro ou cinema repreendendo algum espectador? “Lá fora, eles levam essa questão muito a sério. Já vi funcionários tomarem o celular de uma pessoa e só o entregarem no fim da sessão”, conta o diretor Claudio Botelho, frequentador habitual das duas mecas do teatro mundial.

Collection Privee/Lee/Leemage/ImageForum/AFP
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Curiosamente, o padrão de comportamento que prevê silêncio e compenetração na plateia é relativamente recente. Em seus primórdios, o cinema tinha muito de socialização e farra. “Tanto nos Estados Unidos quanto aqui, as plateias eram formadas, em sua maioria, por gente iletrada, simples e muito participativa. O público gritava, torcia pelo mocinho ou pela mocinha e até disparava impropérios”, diz João Luiz Vieira, professor de cinema da Universidade Federal Fluminense. Na ausência do artista em cena, as normas de etiqueta são até hoje bem flexíveis. Arte mais antiga, o teatro conviveu intensamente com ruidosas manifestações da plateia. No século XVI, as peças de William Shakespeare encenadas no lendário The Globe, em Londres, contavam com espectadores mais interessados em jogar, namorar e comer, e, vez por outra, atirar alimentos no elenco. Dois séculos mais tarde, a companhia Comédie-Française disponibilizava lugares caríssimos no próprio palco, junto dos atores e músicos. “As pessoas faziam questão de chegar atrasadas e atrair a atenção para si. O teatro era a mais pública das diversões”, explica a teatróloga Fátima Saadi. Aos poucos, com o posterior surgimento do realismo e, no fim do século XIX, do naturalismo, convencionou-se que o que aontecia no palco deveria dar a ilusão de ser um reflexo do mundo real. Com isso, a intervenção da plateia foi reduzida. Uma tradição de mais de 100 anos que, atualmente, é perturbada por irritantes toques de celular.

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