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Choque de realidade

A euforia do passado recente deu lugar a uma onda de baixo-astral entre os cariocas. Na verdade, tanto o otimismo exagerado quanto a ressaca atual são equivocados

Por Ernesto Neves e Felipe Carneiro
Atualizado em 2 jun 2017, 13h11 - Publicado em 19 mar 2014, 18h14

Marcada por tendências e modismos, a temporada de verão no Rio costuma ser uma espécie de retrato dos padrões de comportamento e do estado de espírito carioca. No caso do período que começou em dezembro e termina dentro de duas semanas, as lembranças que ficam não são muito lisonjeiras. Tivemos arrastões nas praias, uma onda de assaltos na Zona Sul, episódios de violência em favelas pacificadas, lixo acumulado nas ruas durante o Carnaval, o caos no trânsito provocado pelas intervenções no centro da cidade, tudo embalado por um custo de vida altíssimo. Tantas experiências ruins dão a impressão de que a cidade foi tomada por uma ressaca depois da euforia decorrente de sua escolha como sede da Olimpíada de 2016. Nada mais natural, então, nos sentirmos pessimistas quanto ao futuro. Por mais legítima que seja, tal postura é um exagero. Assim como é despropositada a ideia de que a cidade se transformaria em um paraíso a um estalar de dedos. “As pessoas tendem a julgar a realidade pelo momento que elas vivem, sem pôr os fatos em perspectiva. Passamos por situações desagradáveis nos últimos meses, é verdade. Também estamos frustrados com a lentidão das mudanças. Mas é inegável que a vida está muito melhor hoje do que cinco ou seis anos atrás”, avalia a filósofa e psicanalista Viviane Mosé. “Mudanças como as que desejamos são complexas e não acontecem de uma hora para outra.”

Para chegar a uma avaliação objetiva dos reais desafios que enfrentamos, VEJA RIO selecionou seis afirmações que os cariocas têm ouvido ? ou mesmo dito ? com frequência nas últimas semanas, sobre temas que vão da economia à segurança pública, passando por trânsito e meio ambiente. Com a ajuda de especialistas, a revista se propôs a atribuir-lhes o que têm de mito ou de verdade a partir de dados concretos como números e estatísticas. O resultado pode ser conferido nas próximas páginas e, como mostram números e especialistas, não há nenhuma razão para entrarmos em depressão. O que existe pela frente é muito trabalho a ser feito.

A atual escalada de violência pode comprometer os ganhos na área de segurança pública

Roubos cometidos por menores no Arpoador e no Aterro do Flamengo. Policiais assassinados por bandidos no Complexo do Alemão. Tiroteios na Rocinha e no Pavão-Pavãozinho. Nos últimos três meses, seguidos sobressaltos instalaram o temor de que a espiral de violência dos anos 1990 estivesse de volta. O grau de histeria chegou a ponto de um adolescente suspeito de roubo ser preso a um poste com uma trava de bicicleta por um grupo de valentões que tentavam fazer justiça com as próprias mãos. As sucessivas ocorrências têm levado os cidadãos a acreditar que o modelo de pacificação de favelas adotado desde 2008 atingiu o esgotamento e começa a naufragar. A resposta a tal inquietação é não. Ainda que índices apontem o crescimento de 9,7% no número de homicídios da capital fluminense nos últimos doze meses, o cenário atual é muito diferente do de 1994. Naquele ano, chegou-se ao pico de 64 mortes violentas por 100?000 habitantes, taxa compatível com a de nações mergulhadas em guerra civil. Hoje, são 28 assassinatos por 100?000 habitantes, número alto se comparado a países civilizados, mas 56% inferior ao registrado em 1994. “Em termos de estratégia policial, as UPPs são e vão continuar sendo a melhor resposta já criada para combater o crime no país. Elas substituem a lógica do confronto, um tipo de abordagem fracassada”, explica João Trajano, cientista político e coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “As UPPs precisam de ajustes, principalmente na área de investigação. Mas não se pode desqualificar ou descartar o programa.”

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Os primeiros passos já foram dados nessa direção, e começam a mostrar resultados. Criada no fim de 2013, a delegacia de Polícia Civil da Rocinha capturou na terça (11) um suspeito de coordenar ataques à UPP da favela em fevereiro. Um dia antes, oito homens foram presos no Alemão, acusados de matar o soldado da PM Rodrigo Paes Leme. Inverter a lógica do crime, que por décadas dominou áreas inteiras da cidade, é tarefa árdua. Acostumados a determinar as regras em comunidades sob seu jugo, traficantes têm reagido à perda de território, como aconteceu recentemente na troca de tiros com policiais no Pavão-Pavãozinho. “Por anos, o carioca conviveu com tiros, assaltos e balas perdidas, o que nos legou uma memória traumática”, diz o secretário de Segurança José Mariano Beltrame. “Quando um confronto entre polícia e traficantes acontece, a tendência é de fato acreditar que aqueles tempos ruins estão de volta”, explica. O sucesso das ocupações do Morro Dona Marta, em Botafogo, e da Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, de extensão restrita e população pequena, criou a expectativa que o mesmo se repetisse em áreas maiores, como a Rocinha e o Complexo do Alemão. “Entramos em antigas megalópoles do crime, áreas de urbanização caótica onde é difícil realizar o patrulhamento. Temos de discutir a sério como urbanizar esses locais”, diz o secretário. Hoje, a resposta ao crime é menos reativa e mais coordenada, o que também reflete as mudanças introduzidas nas forças de segurança. A situação do Rio pode estar distante do ideal, mas os dias de faroeste ficaram no passado.

Passados os grandes eventos esportivos, a economia do Rio entrará em um momento de retração

Os anúncios de que a Copa do Mundo e a Olimpíada viriam para o Rio de Janeiro trouxeram uma visibilidade inédita para a cidade e criaram uma grande expectativa nos cariocas. Vieram as promessas de obras faraônicas que impactariam a qualidade de vida dos moradores e impulsionariam o desenvolvimento urbano. Parte delas está saindo do papel, mas não são poucos os projetos que ficarão pelo caminho ou juntarão mofo nas gavetas da administração pública. A menos de 100 dias da Copa e a pouco mais de dois anos dos Jogos Olímpicos, começa a ganhar peso a sensação de que as mudanças não serão tão relevantes e que corremos o risco de retornar ao marasmo econômico em que ficamos atolados por quase três décadas. A realidade, entretanto, aponta para um cenário diferente. “Os grandes eventos são muito importantes, mas por terem data e hora para acabar deixam no ar a impressão de que depois da festa tudo volta ao que era antes”, diz Marcelo Haddad, diretor da agência Rio Negócios. “As pessoas se esquecem de que o verdadeiro propulsor do desenvolvimento carioca e fluminense é o petróleo da camada pré-sal, que de fato transformará nossa economia.”

A Copa e a Olimpíada, juntas, catalisaram importantes investimentos alinhados de União, estado e município em infraestrutura, como o Metrô e a Transcarioca. Mas é a exploração petrolífera na Bacia de Campos que determinará o futuro do Rio. Até 2017 a Petrobras investirá 127 bilhões de dólares na exploração, recursos que fluirão por uma cadeia de centenas de empresas de setores tão díspares como o naval, o alimentício, o hoteleiro e o portuário. É verdade que a petroleira brasileira vive uma crise, provocada principalmente pelo uso político que o governo federal faz dela. Também são reais os abalos causados pela implosão de outro gigante do ramo ? o ex-bilionário Eike Batista, cujo retumbante fracasso arranhou a imagem do empreendedorismo carioca. Mas a enorme reserva de ouro negro continua no quintal do Rio e o preço do barril não para de subir. “Por uma série de decisões eleitoreiras do governo, ainda não estamos aproveitando o potencial que temos nas mãos. Isso não significa que toda essa riqueza não explorada se evaporou”, afirma o consultor Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Um relatório da agência de risco Standard and Poor?s (S&P) divulgado na semana passada dá a medida de nossa solidez econômica. Apesar da piora na avaliação feita pelos americanos do país como um todo (que passou da nota BBB estável para BBB negativo), a nota da cidade do Rio segue inalterada (BBB estável). Os motivos? Os analistas da S&P confiam que, mesmo sob um cenário adverso, a capital honrará pontualmente seus compromissos, dadas sua robusta economia, boa performance financeira e flexibilidade de orçamento. Citam ainda como exemplo de pujança o fato de o Rio ter um PIB per capita de 15?400 dólares, valor 3?000 dólares superior à média nacional.

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Genilson De Araujo Silva (plataforma), André Valentim (Eike)
Genilson De Araujo Silva (plataforma), André Valentim (Eike) ()

O turismo cresce, mas ainda há viajantes que partem com críticas à cidade e aos cariocas

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Se existe um setor que refletiu de imediato a boa fase do Rio, é o de turismo.Mais segura, com a autoestima em alta e gozando de uma popularidade imbatível, a cidade tem sido inundada por levas de visitantes, seja do Brasil, seja do exterior. Somente neste verão que se aproxima do fim, o Rio recebeu 3,3 milhões de forasteiros, que deixaram 2,6 bilhões de dólares por aqui ? 200?000 pessoas a mais que no mesmo período de 2012. O impacto nos cofres cariocas no perío­do foi de 400 milhões de dólares extras em comparação ao ano anterior. “É verdade que o Rio é um destino turístico dos mais tradicionais, mas a Copa e a Olimpíada trouxeram uma publicidade poderosa, e o resultado está aí para quem quiser ver”, afirma o secretário Antônio Pedro Figueira de Mello, da Riotur.

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Basta olhar o crescimento da rede hoteleira para perceber o impacto. Há, hoje, 76 projetos de hospedagem em diferentes fases de construção no município, que dobrarão o número de leitos disponíveis até 2016. Trata-se de uma ótima notícia, com impacto direto sobre uma das mazelas da cidade, no caso o preço das diárias dos hotéis. “A hospedagem no Rio é uma das mais caras do mundo, pois há uma demanda reprimida muito forte. Não é oba-oba, o Rio vai receber cada vez mais gente mesmo”, afirma Andrew Sangster, presidente da consultoria britânica Hotelanalist. O problema é justamente a maneira como recebemos esses turistas. É fato que o Aeroporto Tom Jobim não perderá seus ares de rodoviária antes da Copa do Mundo. Da mesma forma, há pouca chance de melhora nos péssimos serviços prestados por lojistas, funcionários de restaurantes e motoristas de táxi. A cultura de achacar quem não fala português segue forte e os serviços de informação continuam prestando uma assistência sofrível a quem é de fora. Para se firmar como um destino desejável, não basta oferecer um pacote de belezas incomparáveis. É preciso fazer com que as pessoas, ao partir, sintam uma irresistível vontade de voltar.

Fernando Frazão
Fernando Frazão ()

O vexame do lixo deixado nas ruas no Carnaval pode se repetir nos grandes eventos

Um dos símbolos da retomada do Rio, o Carnaval de rua atrai, em média, 1 milhão de visitantes. Neste ano, porém, saímos da folia com a imagem manchada. A deflagração de uma greve de garis em meio aos festejos deixou montanhas de lixo nas principais vias da cidade. A imagem chocou, ganhou repercussão internacional, com manchetes negativas nos jornais e nas TVs do exterior, entre elas a americana CNN. Com o mau cheiro impregnando a atmosfera, ganhou força a ideia de que a maneira como lidamos com nossos dejetos está à beira do descontrole. Trata-se, na realidade, de um episódio localizado que não reflete os avanços que registramos nessa área. O programa Lixo Zero, lançado em agosto de 2013, derrubou em 58% o despejo de detritos nas ruas ao punir os porcalhões que jogam papéis, embalagens, guimbas e outros objetos fora das lixeiras com multas que variam de 98 a 3?000 reais. Desde sua implantação, 35?000 multas já foram aplicadas e um batalhão de 500 profissionais, entre agentes da Comlurb e guardas municipais, fiscaliza 62 bairros e as praias. De fato, estamos muito mais atentos à limpeza urbana, como comprova a repercussão do vídeo em que o prefeito Eduardo Paes se livra de um pedaço de fruta em uma rua da Zona Oeste.

A questão ambiental no Rio, entretanto, vai além das pilhas de lixo nas ruas. A Baía de Guanabara, as lagoas da Barra e Jacarepaguá e os derrames de esgoto em áreas como o costão da Avenida Niemeyer revelam quanto estamos distantes de cumprir as promessas feitas ao Comitê Olímpico Internacional (COI) em 2009. De acordo com o caderno de encargos entregue pelo governo brasileiro, no momento em que a pira olímpica fosse acesa, 80% dos 16?000 litros de esgoto lançados na Baía de Guanabara por segundo teriam o tratamento adequado. Na Zona Oeste, o sistema lagunar estaria dragado e completamente livre dos efluentes domésticos do entorno. A trinta meses do início da competição, no entanto, o cenário é desolador. Hoje, apenas 35% do esgoto produzido na região metropolitana do Rio recebe tratamento. Bairro em franca expansão, o Recreio continua a jogar 30% de seus rejeitos in natura no meio ambiente, enquanto em Jacarepaguá o porcentual chega a 40%. “As medidas realizadas até agora soam como maquiagem. São soluções emergenciais que não resolvem o problema”, diz Paulo César Rosman, professor de engenharia costeira e oceanográfica da Coppe/UFRJ.

Divulgação
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As obras viárias não aliviarão o trânsito caótico

Estressados com o progressivo estrangulamento de ruas e avenidas, cidadãos comuns e até mesmo autoridades temeram o pior quando a demolição da Perimetral começou. Catastrofistas de plantão chegaram a falar que na ocasião ocorreria o pior engarrafamento do mundo. Um completo exagero. Mesmo após o fim da via expressa elevada, por onde 78?000 veículos trafegavam diariamente, a fluidez no tráfego se manteve em ritmo tolerável. “Houve uma boa adaptação do carioca, que mudou a rotina para enfrentar o período crítico de obras”, diz José Eugênio Leal, professor de engenharia de transporte da PUC. Muitos desistiram do transporte individual. Na Ponte Rio-Niterói a redução de automóveis chegou a 20% e o metrô registrou um afluxo adicional de 150?000 pessoas aos habituais 650?000 usuários do sistema.

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O panorama é complexo até 2016, mas existe uma tendência de melhora. Em dois anos, o Centro vai ser conectado ao BRT Transbrasil, que chegará até Deodoro. Já a rede de veículos leves sobre trilhos (VLTs) ligará a rodoviária ao Aeroporto Santos Dumont. Calcula-se que, somente na região central, a capacidade de tráfego seja aumentada em cerca de 30%. No entanto, a restrição aos carros particulares deve permanecer. Já a inauguração do metrô até a Barra, também daqui a dois anos, será responsável pelo transporte diário de 300?000 passageiros. Com isso, espera-se uma redução de até 40% no fluxo de automóveis entre a Zona Oeste e a região central. Para reduzir o gargalo das estradas de acesso ao Rio, será fundamental a inauguração do Arco Metropolitano. Com atraso de quatro anos, o anel rodoviário de 145 quilômetros ficará pronto neste semestre. A sensação hoje é de caos, mas o alívio virá.

Os cariocas sofrem com aumentos de preços abusivos e especulação

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O Rio está caríssimo. Não há um só setor da economia que se salve: paga-se muito para comer, ir a shows, fazer compras no supermercado, alugar um apartamento, ir ao médico, educar os filhos. Os altos valores pedidos assustam igualmente turistas e moradores, o que já levou a movimentos como o Rio $urreal (que compila os preços mais absurdos) e o Isopor (que incentiva as pessoas a levar a própria cerveja para beber na rua). Não se trata apenas de histeria de redes sociais. A inflação carioca nos últimos doze meses acumula alta de 7,49%, bem acima da média nacional, de 5,95% ? em que o Rio desempenha um peso expressivo ?, e da meta do governo federal, de 6,5%. “E o índice é calculado somente sobre uma cesta básica de produtos e serviços, que não inclui alguns campeões de aumento como hotéis, boates e restaurantes”, explica o pesquisador André Braz, analista do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

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É importante deixar claro, no entanto, que a maior parte dos estabelecimentos aumenta os preços porque a lei da oferta e da procura indica que há espaço para tanto. Há casos de abuso, como a remarcação de preços em períodos festivos como o Réveillon e o Carnaval, mas de maneira geral o que se vê são consumidores dispostos a gastar. A economia está aquecida, o carioca tem dinheiro no bolso e o mercado se aproveita dessa realidade. “Aqui, paga-se literalmente o preço de não ter uma infraestrutura que permita um aumento de demanda sem reajuste”, explica Marcos Machado, professor de economia da Uerj. Nesse cenário, o preço só cairá no dia em que os consumidores se recusarem a pagar.

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