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Invasão turística, esgoto e lixo ameaçam o santuário de Ilha Grande

A Ilha Grande, santuário natural da Costa Verde, sofre com o turismo predatório, o lixo e o esgoto que tomam suas praias deslumbrantes

Por Ernesto Neves
Atualizado em 2 jun 2017, 12h39 - Publicado em 18 abr 2015, 00h59

Cenário formado por enseadas de águas cristalinas cercadas por uma natureza deslumbrante, a Ilha Grande é uma espécie de Éden insular localizado a 150 quilômetros do Rio e a pouco mais de uma hora de barco do continente. Seus 193 quilômetros quadrados de matas verdejantes dominam uma vasta baía pontilhada de ilhotas que servem de santuário ecológico para inúmeras espécies marinhas, entre elas golfinhos. Mantida à margem do crescimento vertiginoso que ocorreu nas suas vizinhas continentais, a ilha teve preservada sua beleza e características naturais. Recentemente, entretanto, começaram a surgir sinais de que a depredação ambiental é uma ameaça concreta ao paraíso.

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Ivan Neves
Ivan Neves ()

O verão de 2015, especificamente, foi traumático para a região. “De pacata aldeia de pescadores, fomos alçados a destino turístico de massa. Isso já provocou estrago considerável no meio ambiente local”, diz Ivan Neves, subprefeito da ilha. “Não houve nenhum planejamento que nos preparasse para o que estamos vivendo hoje”, resume.Por quatro meses, entre dezembro e março, a Ilha Grande registrou lotação máxima de suas pousadas, albergues e campings, um fenômeno que se manteve no início de abril. Em média, a cada fim de semana chegam 20 000 pessoas, mas no Réveillon o número bateu em 30 000, um recorde. Em picos como esses, as praias mais próximas da atracação dos barcos chegam a lembrar o aperto insuportável de Copacabana e Ipanema no alto verão. Nem mesmo o aumento na tarifa da travessia, de 4,80 para 14 reais, adotado no fim do ano passado para coibir o fluxo de visitantes, surtiu efeito. Paralelamente, os navios de cruzeiro adotaram as águas transparentes como ponto de parada em suas viagens pela costa brasileira. Ao todo, foram 62 desembarques, que despejaram em média 3 000 pessoas no acanhado ancoradouro central.

Vila do Abraão
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O fluxo descontrolado de visitantes trouxe ainda um problema colateral: o tráfico de drogas. Em dezembro, um grupo de bandidos foragidos da Vila Vintém, favela entre os bairros de Realengo e Padre Miguel, na capital fluminense, se alojou em casas abandonadas e as transformou em ponto de revenda de cocaína e maconha. A farra acabou quando uma força-tarefa de cerca de vinte homens vindos de Angra dos Reis se juntou aos oito PMs que patrulham a ilha e prendeu os cinco traficantes que se esbaldavam por ali. “Ao não estabelecer medidas de controle, o governo adota uma atitude populista sem pensar nas consequências”, diz Nelson Palma, presidente da Organização para Sustentabilidade da Ilha Grande. “Seria possível, por exemplo, permitir o embarque somente de quem possui reserva nas pousadas e campings daqui.”Entre todos os problemas da ilha, chama atenção a precariedade da infraestrutura sanitária. A única estação de esgoto existente não trata um mililitro dos efluentes e serve apenas para bom­bear os resíduos da rede para um emissário submarino. Como os equipamentos são elétricos, cada vez que acontece um apagão, o sistema para de funcionar. 

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Com isso, os dejetos vazam para os três córregos que serpenteiam entre os hotéis e as pousadas, desembocando in natura na orla. Somente em março, foram contabilizadas oitenta horas sem energia no vilarejo, período em que a estação ficou fora de atividade. Obso­le­ta, ela também não dá mais conta da demanda, pois foi projetada para uma população de, no máximo, 5 000 pessoas. “Fiquei muito decepcionada com o que vi aqui”, diz a pedagoga carioca Lita Santos, que esteve na ilha pela primeira vez no último dia 11. “Sou frequentadora de Paraty há anos, e lá a natureza está bem mais preservada”, compara. Quem chega à Ilha Grande pela manhã depara com uma cena insólita. Todos os dias, por volta das 9 horas, uma traineira encosta no cais próximo ao que recebe os passageiros. Um caminhão, vindo em marcha a ré, verte uma montanha de lixo para dentro do barco, de onde emana um odor nauseabundo. Não raro, os dejetos caem da caçamba para o cais, deixando um rastro de imundície. Diariamente, 15 toneladas de detritos são recolhidas, dispostas em barcos comuns e levadas para um aterro sanitário em Angra. Nos fins de semana, a quantidade dobra. Como a coleta é feita de forma improvisada, a operação de recolhimento demora, só em Abraão, seis horas. Nas praias e trilhas repousam restos de plástico, latas de cerveja e até eletrodomésticos semidestruídos. “A coleta é ruim, mas muito pior é o comportamento do turista que traz isopor lotado de comida e bebida e abandona tudo por aqui”, diz Frederico Britto, presidente da Associação dos Meios de Hospedagem da Ilha Grande (AMHIG) e dono de uma pousada na Vila do Abraão.

Frederico Britto
Frederico Britto ()
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O cenário natural da Ilha Grande permaneceu praticamente intocado graças a uma série de fatores. A topografia é singular, dominada pelo relevo acidentado. Em meio a montanhas que atingem 1 000 metros de altitude, a Mata Atlântica fechada compõe uma barreira quase intransponível. Não à toa, o local foi escolhido para receber um presídio, o Instituto Penal Cândido Mendes, na década de 40. Por lá passaram figuras notórias e tão distintas entre si quanto o escritor Graciliano Ramos, o lendário Madame Satã, o ex-de­pu­ta­do federal Fernando Gabeira e o traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, que fugiu da cadeia e foi resgatado por um helicóptero, em 1985. A presença intimidadora do complexo penal inibiu a construção de hotéis e casas de veraneio até ele ser desativado, em 1994. Depois disso, a fama de pa­raí­so não tardou a se espalhar, com suas 106 praias que, não raro, figuram entre as mais belas do planeta, segundo publicações especializadas. A solução para equacionar os problemas da ilha é complexa.

Vila do Abraão
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Ao contrário de outros paraísos insulares que têm a visitação restrita, como Fernando de Noronha, a Ilha Grande está muito próxima do continente. O transporte é feito por barcos, em sua maioria ilegais, a preços acessíveis. A região é um verdadeiro mosaico de áreas de conservação, que não possuem estrutura para coibir os descalabros que ali se instalaram. Criada em 1986, a Área de Proteção Ambiental de Tamoios engloba toda a extensão da ilha. Além dela, há o Parque Estadual da Ilha Grande, o Parque Estadual Marinho de Aventureiro e a Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul. Existe um notório conflito de superposição de responsabilidades, que resulta num interminável jogo de empurra entre autoridades estaduais e a prefeitura de Angra. “Aqui vivemos em uma espécie de vácuo governamental, em que diversas esferas têm responsabilidades a cumprir, mas nenhuma faz nada direito”, reclama Britto, da AMHIG.

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Para piorar, uma parceria entre a Vale e o Parque Estadual, que garantia a presença de 100 guardas ambientais, foi encerrada recentemente, o que fez com que o efetivo fosse reduzido a pouco mais de dez homens.Em resposta ao brutal afluxo de visitantes do último verão, a prefeitura de Angra promete estabelecer nos próximos meses um cadastro que vai restringir a atividade de barcos particulares no transporte de passageiros. Já a Secretaria Estadual de Ambiente se comprometeu a investir na rede de esgoto. Habituados às promessas dos órgãos do governo, os próprios moradores têm se mobilizado para evitar o pior. A remota Praia de Aventureiro, no lado oceânico da ilha, que até 2005 chegava a receber no máximo 5 000 visitantes em seus campings, hoje não abriga mais que 560 pessoas, todas cadastradas na saída das embarcações, ainda no continente. A ideia de repetir o modelo no resto da ilha anima os moradores. O problema é que, sozinhos, eles não vão conseguir salvar da destruição o paraíso onde vivem. 

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