O segundo adeus de Herbert Richers

Mergulhado em dívidas trabalhistas e tributárias, o estúdio que foi sinônimo de dublagem no Brasil tem sua sede leiloada

Por Caio Barretto Briso
Atualizado em 5 jun 2017, 14h20 - Publicado em 24 out 2012, 16h21
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herbert-richars-01.jpg (Redação Veja rio/)
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Faz tempo que ninguém apara a vegetação sobre o muro do número 1331 da Rua Conde de Bonfim, na Tijuca. A folhagem verde-escura cresceu muito nos últimos anos e encobriu as letras garrafais cravadas no concreto. Hoje oculta, a inscrição de apenas duas palavras bastava para saber o que havia do lado de dentro: Herbert Richers. Sede do maior estúdio de dublagem que o Brasil já teve, cujos filmes vertidos para o português começavam com a famosa vinheta “Versão brasileira, Herbert Richers”, o local perdeu sua alma depois da morte do fundador e presidente, que dá nome à empresa, no fim de 2009. Mas o adeus definitivo só veio agora. Com 28 ações trabalhistas movidas por ex-funcionários, totalizando um valor estimado de 8 milhões de reais, o estúdio teve o imóvel penhorado e levado a leilão. Recentemente, um grupo de empresários o arrematou por 1,7 milhão de reais. Com a transação, encerra-se de forma melancólica uma era grandiosa da TV brasileira, que já havia perdido, no ano passado, o também tradicional Estúdio Álamo, de São Paulo.

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Parece clichê de filme ruim, mas pode-se dizer que o fim da empresa foi uma tragédia anunciada. As dez salas de dublagem fazia muito não viviam a bonança das décadas passadas, quando a companhia chegou a dominar mais de 80% do mercado nacional. Ironicamente, foi a própria relação com os atores que contribuiu para tal desfecho. Antes, por determinação do seu sindicato e devido ao vínculo com a Herbert Richers, eles eram obrigados a esperar dois meses se quisessem trabalhar sem vínculo empregatício para outro estúdio. A flexibilização de regras, costurada num acordo com a classe em 2003, baixou esse prazo para apenas sete dias. Começaram então a surgir dezenas de concorrentes no Rio e principalmente em São Paulo, que passaram a oferecer o serviço por valores (e qualidade) muito inferiores. Enquanto esses pequenos proliferavam, a receita do líder despencou e o altíssimo custo fixo mensal de 300 profissionais contratados estrangulou suas finanças ? nos anos 70, a Herbert Richers tinha mais artistas na folha de pagamento que a TV Globo. “Não havia recursos para bancar tantas rescisões”, conta o empresário Gil Monteaux, braço direito de Richers durante oito anos, que saiu de lá para criar o próprio negócio, o Audiocorp, um dos poucos de alto padrão na cidade, ao lado de Delart e Wan Macher.

O que se viu a partir daí foi uma trajetória decadente. Com a empresa operando no vermelho, os salários começaram a atrasar e os funcionários descobriram que várias parcelas do FGTS não estavam sendo pagas. A maior parte das ações trabalhistas é dessa época. Acumulou-se também uma dívida com o município pelo não pagamento de tributos de 2007 em diante, hoje em torno de 400?000 reais. Para cobrir um pedaço do rombo, uma parte do maquinário foi a leilão no fim do ano passado. Entraram no martelo, por exemplo, 120 aparelhos de videoteipe e outras engenhocas de tecnologia ultrapassada. Nada que pudesse alterar o inequívoco cenário de falência. “É lamentável que tenha chegado a esse ponto. A última coisa que meu pai queria era demitir os funcionários. Ele era mais ligado a eles e à empresa do que a nós”, relata Herbert Richers Junior, 57 anos, o filho caçula, que ainda tentou, ao lado do irmão, Ronaldo Richers, manter a casa em funcionamento.

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Embora o Rio de Janeiro concentre os estúdios mais bem equipados do país, São Paulo detém hoje a maior fatia do mercado. Existem quinze empresas por aqui contra trinta na capital paulista. Juntas, elas movimentam cerca de 50 milhões de reais por ano e, graças à classe C, que prefere assistir aos filmes em português, e à demanda por desenhos infantis, continuam com espaço de atuação garantido. Quando a Herbert Richers surgiu, em 1960, o panorama era outro: a dublagem estava engatinhando no Brasil e a maioria dos filmes estrangeiros era exibida com legendas, em uma tecnologia de difícil leitura. Por sugestão do amigo Walt Disney, Richers fez sua primeira incursão na área, produzindo a versão brasileira do seriado Zorro, atração da extinta TV Tupi. Ele já era um produtor de cinema consagrado, fazia de cinco a oito longas por ano, entre eles Assalto ao Trem Pagador (1962) e Vidas Secas (1963), e percebeu ali o potencial do novo filão.

Nascido em 1923 no interior de São Paulo, Herbert Richers chegou ao Rio na década de 40 para cursar a faculdade de engenharia. Sem muito dinheiro, começou a trabalhar como fotógrafo em um estúdio de cinema. Em 1946, um lance de sorte mudaria seu destino: foi contratado como cinegrafista de um documentário que Walt Disney veio gravar no Rio. O inglês perfeito e seu carisma pessoal o aproximaram do criador do Pato Donald e lhe abriram as portas de Hollywood. Nos anos 50, Richers viajou com frequência para Los Angeles, onde era recebido pelos cabeças dos principais estúdios. Passou a distribuir filmes, depois a produzi-los, até que, finalmente, criou a empresa que deixou seu nome para sempre na história da TV e do cinema brasileiros. “Acho que foi melhor ele não ter assistido ao fim de tudo. Nada poderia deixá-lo mais triste”, diz Cookie Richers, sua mulher durante quarenta anos. Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer agora com os 3?000 metros quadrados do terreno. O certo é que Herbert Richers continuará sendo lembrado, merecidamente, como o pai da dublagem no Brasil.

Um final nada feliz

Criador de um império, Herbert Richers reinou durante quase meio século no mercado das versões em português

1956

Richers dá seu primeiro grande salto ao se tornar produtor de cinema com o filme Sai de Baixo, de J.B. Tanko. Mais de setenta fitas foram feitas com dinheiro do seu bolso, entre elas Assalto ao Trem Pagador e Meu Pé de Laranja Lima.

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1959

Após a morte de Carmem Santos, um ícone do cinema brasileiro, seus herdeiros decidiram vender o estúdio construído por ela nos anos 30. Richers não perdeu a oportunidade e arrematou o imóvel.

1960

A TV Tupi exibe o seriado americano Zorro, produzido pela Disney, cuja dublagem coube a Herbert Richers por sugestão do criador do Mickey e do Pato Donald.

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1978

Após uma greve que durou três meses, a profissão de dublador foi regulamentada. Nos meses seguintes, Richers já tinha assinado a carteira de aproximadamente 300 atores.

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1990

Apesar do crescimento da concorrência, formada em boa parte por ex-funcionários, a companhia ainda dominava 80% do mercado nacional de dublagem.

2003

Um acordo entre empresários do setor e o sindicato da classe flexibiliza a forma de contratação dos dubladores, permitindo contratos temporários. Com uma folha de pagamento altíssima, o estúdio decide manter os funcionários e acumula prejuízos.

2009

Pai da dublagem no Brasil, Herbert Richers morre de insuficiência renal aguda aos 86 anos, na madrugada de 20 de novembro.

2012

Abandonada há três anos, a sede da empresa vai a leilão judicial para pagar dívidas trabalhistas e tributárias. É vendida por 1,7 milhão de reais.

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