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Uma questão de fé

Protestantes e parte da sociedade não viram com bons olhos aquela estátua católica gigante. Com o passar dos anos, porém, a rejeição parece ter se diluído, e o Cristo hoje transcende qualquer credo

Por Lula Branco Martins e Marcelo Ambrosio
Atualizado em 5 jun 2017, 14h49 - Publicado em 4 out 2011, 15h42

Imagine a seguinte situação. O empresário Eike Batista resolve, com seus bilhões, ajudar a despoluir a Lagoa Rodrigo de Freitas e pede permissão ao governo federal para que ali (um local público) seja erguida, ao centro, uma bandeira de seu time, o Botafogo, tão grande que pudesse ser vista por qualquer pessoa que caminhasse pelos sete bairros à sua volta. Uma sensação de absurdo semelhante a essa pode ter sido vivenciada pela população não católica do Brasil, e do Rio em especial, na década de 20, alguns anos antes da construção do Cristo. Tal como hoje se discute futebol pelos bares, os ânimos naquela época estavam exaltados por causa da fé.

A polêmica religiosa teve o tamanho do Corcovado. A grande questão era que a Constituição de 1891, a primeira da República, havia definido a nação como laica. E a Igreja Católica, que durante o Império era a religião oficial do país, desejava reagir, com um símbolo forte, a essa perda de espaço político, além de querer mandar um recado aos defensores das doutrinas socialistas que prosperavam na Europa. Suas ambições, porém, soavam descabidas aos olhos de outros credos, seitas e religiões.

A primeira ideia de construir uma estátua de Jesus Cristo num ponto alto da cidade havia saído dos pensamentos de um pacato e sensível capelão do Colégio Imaculada Conceição, em Botafogo, o jesuíta francês Pierre-Marie Bos. Ele tinha chegado ao Brasil em 1859 e vislumbrou nas montanhas uma imagem debruçada sobre a baía. Morreu em 1916 sem ver nem esboço do monumento e, pior, sem ter noção da confusão que seus sonhos acabariam criando.

A iminente exposição do centenário da independência, em 1922, estimulou o Círculo Católico, organização leiga de intelectuais ligada ao Vaticano, a reavivar a luta pela afirmação da Igreja no Brasil, que àquela altura já era considerado uma das maiores nações católicas do mundo, ao lado de França e Itália. O movimento era liderado pelo arcebispo coadjutor do Rio, cardeal Sebastião Leme, organizador do Congresso Eucarístico Nacional, coincidentemente realizado na mesma época ? e ele passou a articular uma reação contra a secularização do estado. A intenção era criar uma relação direta do público operário, ou da classe média de então, com a Igreja, estimulando ainda o patriotismo que estaria embutido em um monumento como o do Cristo do Corcovado. E o cardeal era claro e direto em suas palavras: ?Se não somos uma força no regime público, é porque não temos a compreensão dos nossos deveres sociais?, escreveu à Arquidiocese de Olinda, numa de suas convocações ao prelado.

O tom dos discursos favoráveis ou contrários ao monumento ia ganhando contornos radicais. Se, por exemplo, prevalecesse a ideia do general Pedro Carolino Pinto de Almeida (que cumpriu mandato de presidente do Círculo em 1921), o Cristo seria todo feito de bronze, pois deveria, enfim, coroar a soberania da Igreja como um rolo compressor, sendo ainda instrumento de combate ao materialismo, ao modernismo e à democracia liberal. Na ocasião, um abaixo-assinado pró-estátua, liderado pela escritora Laurita Lacerda e subscrito por 20?000 mulheres cristãs, mostrou-se fundamental para que a obra vingasse, acuando o presidente Epitácio Pessoa. Ele, então, liberou a construção com um argumento curioso, em que poucos acreditaram: a Igreja Católica levou porque pediu primeiro. Ou seja, tirando por aí, em vez de Jesus, hoje a cidade poderia ter como símbolo um Buda, ou a figura do pastor Martinho Lutero, ou qualquer outra alegoria ? bastava ter gritado mais alto, e antes, que a concorrência.

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O presidente Epitácio Pessoa e trecho de artigo
O presidente Epitácio Pessoa e trecho de artigo (Guga Melgar)

O fato é que, sincero ou não, o aval do governo deflagrou reclamações fortes, vindas especialmente dos batistas. Em 22 de março de 1923, o Jornal Batista, órgão oficial desse braço protestante, classificou a autorização e a própria obra como ?uma afronta a Deus?. Durante a campanha de arrecadação, a mesma língua ferina foi aplicada: ?Que Cristo é esse que precisa de esmolas??, perguntavam as manchetes da época. E, por sua vez, o político Adolfo Bergamini, ligado a grupos protestantes, dizia, num deboche, a correligionários: ?Uma avalanche de moças, raparigas e homens vem à rua, de sacola em punho, para mendigar. Transformaram a população do Rio em um verdadeiro Cristo?.

Em meio ao toma lá dá cá de agressões, os jornais do período destacaram a ação atrapalhada do ministro da Fazenda, Homero Baptista. Primeiro ele havia dado parecer favorável à construção da obra. Semanas depois, naquele mesmo 1921, voltaria atrás, provocando editoriais desconfiados em periódicos como A Notícia, A Pátria e A Noite ? desse último, na edição de 26 de outubro, eis um trecho: ?Não é difícil descobrir a razão oculta desta reviravolta na opinião do ministro da Fazenda. Como rio-grandense, ele é sectário do positivismo, e só aceita o culto ao pensador Augusto Comte?. Parágrafos à frente, o texto ficava ainda mais enfático: ?A negação para que seja erguida a figura grandiosa do Cristo no Corcovado é injusta e irracional?.

?Hoje, a questão religiosa em torno da estátua deve ser vista como um problema já ultrapassado. O Cristo Redentor transcendeu, ganhou outros sentidos no imaginário popular?, diz o arquiteto Jorge Scévola de Semenovitch, que há trinta anos pesquisa o assunto e escreveu vários livros a respeito. ?Poucos o enxergam como sendo um marco desta ou daquela religião. O monumento cresceu como obra, como um pilar da engenharia, como ponto turístico. Virou, mais que um símbolo de fé, um símbolo do Brasil?, completa o estudioso. Disso nem os ateus duvidam.

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