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Cidade de Deus volta às manchetes, mas segue esquecida por Estado

Recordista de tiroteios em janeiro, bairro não conta com uma escola de ensino médio 50 anos após sua criação

Por Saulo Pereira Guimarães
Atualizado em 16 fev 2018, 16h35 - Publicado em 16 fev 2018, 07h30

Atenção, população.” A voz vinha de alto-falantes e lembrava a dos compradores de ferro-velho que circulam em Kombis e caminhonetes pelos bairros. O som saía de um jipe militar, lotado de soldados usando uniformes camuflados, que havia acabado de entrar, naquela tarde de quarta-feira (7), na Rua Daniel, na Cidade de Deus. Ali, os logradouros têm nome de profetas, herança do início do loteamento, na década de 60. Com prédios pintados de verde de um lado e uma praça do outro, a via dedicada ao herói bíblico da cova dos leões estava vazia. “Estamos presentes para garantir a sua segurança e a de sua família. Cidadão de bem, a sociedade não suporta mais ser vítima do crime organizado”, informava a voz masculina, com um telecoteco de tamborim ao fundo, às vésperas do Carnaval, que começaria dali a três dias. “Juntos, somos 6 milhões de agentes de segurança”, encerrava a fala, numa convocatória à colaboração de todos os habitantes do Rio. Em seguida, voltou o “Atenção, população”, e a cantilena seguiu pela Rua Elias. Perto da esquina com a Estrada do Gabinal, o limite do bairro com a zona comercial e mais movimentada, o motorista desligou o som no meio do discurso. Ali, os militares deixaram claro que seu recado era só para a favela, não para o asfalto.

A Cidade de Deus é hoje o lugar que concentra o maior número de tiroteios do Rio. Só em janeiro, foram registradas 46 trocas de disparos, 33 a mais do que no mesmo mês de 2017. Quase sempre marcadas por embates entre policiais e traficantes, as ocorrências já deixaram dez mortos e seis feridos. Os números são do aplicativo Fogo Cruzado, que contabiliza conflitos a partir de notificações encaminhadas por usuários. De acordo com levantamento, em 2017 o conjunto da Zona Oeste também liderou o ranking dos locais com a maior quantidade de situações do tipo, empatado com o Complexo do Alemão. Cada um deles registrou 175 cenas de bangue-bangue. Os dados relativos à comunidade da Zona Oeste escancaram um fato: a violência, já endêmica e gravíssima, atingiu índices mais assustadores no início deste ano. Confrontadas, as autoridades da área de segurança alegam tratar-se de um fato decorrente de disputa entre gangues de tráfico espalhadas na cidade — a Cidade de Deus, também conhecida como CDD, seria um reduto do Comando Vermelho, rival de facções como a Amigos dos Amigos, que tenta se manter no controle da Rocinha, por exemplo. Apesar dos eufemismos oficiais, o local foi palco de enorme operação da Força Nacional, da qual o carro de som descrito anteriormente fez parte. O resultado foi frustrante, para não dizer vexatório: três fuzis e seis pistolas apreendidas. “Adotamos uma política baseada no enfrentamento puro e simples, sem planejamento. Como consequência, temos ações cinematográficas, de grande estardalhaço, mas que, do ponto de vista estratégico, são insignificantes”, diz Cecília Oliveira, gestora de dados do Fogo Cruzado e especialista em segurança pública.

Com a ação militar em pleno andamento na Cidade de Deus, por volta do meio-dia, ambulâncias, jipes e veículos blindados com soldados prontos para uma batalha na selva se misturavam a ônibus lotados na Estrada do Gabinal. Senhorinhas atarefadas nas compras do dia a dia ombreavam com rapagões fardados e armados de fuzis ao mesmo tempo em que curiosos espiavam da janela dos apartamentos. Duas viaturas da 22ª DP pararam em um posto de gasolina e os policiais civis desceram dos veículos. Enquanto comentavam sobre o lugar onde almoçariam, conversaram a respeito da ação da Força Nacional. “Isso tudo para apanhar só três bicos”, disse um deles. Na gíria policial, bico é fuzil. “Uma ação nossa ou da PM seria mais proveitosa”, completou, deixando claro o racha que existe no combate ao crime no Rio. Entre os moradores, a decepção com os parcos resultados de iniciativas desse tipo se soma aos aborrecimentos que passam a sofrer depois de cada investida. Eles se queixam de que, quando os policiais e as equipes de TV saem, sobra apenas a má fama de viverem em uma zona de conflito e reduto de traficantes. “Ao longo da minha vida, acho que deixei de fazer mais coisas porque estava chovendo do que por causa de operações policiais no bairro. Isso não dá em nada”, afirma o diretor de teatro Fernando Barcellos, 35 anos, 33 deles vividos na Cidade de Deus.

A questão da violência costuma ser vista de maneira diferente por quem está dentro e por quem está fora da favela. Os forasteiros se preocupam com os tiros, os assaltos e os bondes de bandidos que extrapolam os limites das comunidades e invadem pistas expressas. Já quem vive lá aprende que o silêncio é a regra da sobrevivência. E isso significa também sofrer calado com os problemas decorrentes de morar em um bairro considerado barra-pesada, como ter uma vaga de emprego negada em razão do endereço, ver uma linha de ônibus mudar de itinerário arbitrariamente ou encontrar o centro cultural que é mantido por uma ONG fechado. Em um estudo feito com moradores da Cidade de Deus no ano passado, a socióloga americana Anjuli Fahlberg, da Northeastern University, em Boston, constatou que em 77% das residências da favela há pelo menos um morador com problemas físicos ou mentais em consequência da falta de segurança.

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É nítida a ligação do aumento dos tiroteios na Cidade de Deus com a crise financeira do estado nos últimos anos e o consequente esvaziamento do programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). De 2016 para 2017, o orçamento da Secretaria de Segurança encolheu de 10,5 bilhões para 8,2 bilhões de reais. Especialistas afirmam que o sumiço de 22% dos recursos destinados ao setor poderia ter sido mais bem administrado com um bom planejamento. Porém, mudanças como a redução dos quadros das UPPs, iniciada em agosto, para otimizar recursos, baquearam ainda mais o trabalho de proximidade que a PM se esforçava para fazer. Quando a guerra na Rocinha explodiu, em setembro, os homens da Cidade de Deus foram deslocados para ajudar no cerco à comunidade da Zona Sul. Vale lembrar que 499 fuzis foram apreendidos em 2017, 35% mais que no ano anterior, em um claro sinal do fortalecimento do tráfico de armas no município. Com bandidos mais bem equipados e policiais em menor número, é natural concluir que os confrontos tenham maior violência. Um exemplo disso aconteceu no último dia 31, quando um choque entre PMs e criminosos na Cidade de Deus deu origem a uma troca de tiros que resultou no fechamento da Linha Amarela por duas horas.

Até a década de 60, o local onde hoje fica a Cidade de Deus era uma área rural. A decisão de criar ali um conjunto habitacional foi de Carlos Lacerda, governador do então Estado da Guanabara. Concluídas há exatos cinquenta anos, as moradias foram entregues por seu sucessor, Negrão de Lima, a famílias trazidas de 63 comunidades. Cerca de 70% delas vinham das favelas da Catacumba, Ilha das Dragas, parques da Gávea e do Leblon, Praia do Pinto e parte da Rocinha. O projeto de reassentamento em conjunto habitacional desmoronou rapidamente por problemas provocados pela distância, pelo isolamento e pela falta de infraestrutura. O núcleo original é hoje chamado popularmente de Quadras (casas) e Apês (conjuntos de edifícios), circundado por uma aglomeração de casebres conhecida como Caratê, nas margens do Rio Grande. A Cidade de Deus ganhou fama em 2002, quando o diretor Fernando Meirelles lançou o filme cujo título é o nome do bairro, indicado em quatro categorias do Oscar de 2004, entre elas melhor diretor e melhor fotografia. A inauguração da UPP, em 2009, parecia ser um sinal de reconciliação com o Estado, após quarenta anos de abandono. A lua de mel atingiu o ápice em 2011, com uma visita do então presidente dos EUA, Barack Obama. No primeiro semestre de 2013, o número de assassinatos chegou a zero e corretores calculavam uma valorização de 75% nos apartamentos da região. O futuro parecia ser promissor.

Fernando Barcellos e Rodrigo Felha: grupo de teatro e jovens na universidade (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

As estatísticas mostravam uma redução na criminalidade, mas isso não significava que a vida era totalmente pacífica para os moradores. O diretor de teatro Fernando Barcellos lembra-se de quando, em 2010, marcou um jantar com um amigo, o cineasta Rodrigo Felha, 29, nascido e criado no conjunto. Felha iria pela primeira vez a Cannes, participar do conhecido festival de cinema na cidade francesa. Porém, em vez de comemorar a viagem com os amigos e vizinhos, teve de ser resgatado de uma blitz da PM. Tomado como suspeito, foi deixado de cueca no meio de uma das praças da comunidade após uma revista. “Não há diálogo que funcione quando um dos lados está armado”, recorda Barcellos. Em novembro de 2016, dois meses depois do encerramento dos Jogos Paralímpicos, um helicóptero da polícia caiu na Linha Amarela e causou a morte de quatro PMs. A princípio visto como um ataque de traficantes — posteriormente, provou-se que houve um problema de manutenção —, o acidente sinalizou para a população, para os bandidos e para os próprios policiais que o estado não teria mais condições de manter a estrutura pré-­Jogos. A mobilização dos traficantes cresceu enquanto o efetivo encolhia e as perseguições se tornavam cada vez mais violentas, até desembocarem nos números assustadores de janeiro. “A UPP foi uma luz no fim do túnel. Só que se apagou”, resume Felha, um dos diretores de 5X Pacificação (2012), documentário sobre o hoje combalido projeto.

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Não bastasse a política de segurança em frangalhos, é possível constatar a falência do Estado em outras áreas. Iniciadas em 2013, as obras da primeira unidade de ensino médio da região já consumiram 4 milhões de reais, mas não foram concluídas. Tanto que o Ministério Público move uma ação na Justiça para que o colégio vire realidade. Na Cidade de Deus, além de as pessoas enfrentarem os obstáculos causados pela violência, sete em cada dez alunos perderam aulas por falta de professores, como verificou o estudo da pesquisadora Anjuli Fahlberg. Em alguns casos, os moradores buscam soluções por si próprios. “Uma moradora se uniu aos vizinhos e asfaltou sua rua várias vezes, porque o lugar em que ela vive está sempre alagado e o governo nunca faz os reparos”, comenta Anjuli.

Duda Almeida, modelo e moradora da Cidade de Deus (Thais Monteiro/Divulgação)

Se existe algo que os moradores da CDD aprenderam a fazer é resolver seus problemas e criar oportunidades. Barcellos e Felha, que juntos mantêm um grupo de teatro chamado Os Arteiros, abriram um curso pré-vestibular, em junho do ano passado, e sete meses depois conseguiram colocar cinco alunos do bairro na universidade. A judoca Rafaela Silva, medalha de ouro do Brasil nos Jogos Olímpicos de 2016, é uma heroína local e, até hoje, uma frase sua — “Sou a prova de que uma pessoa saída de uma favela também pode ser campeã” — é repetida como mantra por muitos jovens. Modelo de sucesso em sentido literal, Duda Almeida ganhou visibilidade nacional como embaixadora de uma marca internacional de xampus, ao lado de Marina Ruy Barbosa e Gisele Bündchen, em 2017. E em abril o lutador de MMA Thiago Marreta, oriundo dos Apês, enfrentará o americano David Branch em Nova Jersey, uma luta que, por si só, já será um ato de grande simbolismo para milhares de jovens de regiões pobres e violentas do Rio. ß

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