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Bebês com microcefalia rejeitados ganham famílias adotivas

Portadores de microcefalia, causada pelo vírus da zika, e rejeitados pelas mães biológicas , essas crianças ganharam uma nova chance

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 19 jan 2018, 20h18 - Publicado em 19 jan 2018, 20h01
 (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Mais de 100 anos após a campanha de erradicação promovida com sucesso por Oswaldo Cruz, a febre amarela leva multidões aos postos de saúde, em busca de vacinação. Vetor de outras terríveis doenças tropicais, o mosquito Aedes aegypti — alvo do sanitarista em 1907 — continua ameaçando os cariocas em pleno 2018. O inseto é o mesmo que trouxe o terror há pouco mais de dois anos, com a epidemia de zika. É impossível dissociar o nome do vírus exótico da microcefalia, má-formação que acomete bebês que estão no útero de mães infectadas. Vítimas do descaso, algumas dessas crianças tiveram destino ainda mais cruel. Acabaram abandonadas em hospitais, maternidades e até na porta de vizinhos assim que nasceram. Agora, graças ao esforço de juízes de varas de infância e juventude e à atitude abnegada de candidatos a pais adotivos, estão ganhando amor e um novo lar.

Os médicos são cautelosos ao debater prognósticos, mas de maneira geral acreditam que, com estímulos e cuidados especiais, as crianças portadoras de microcefalia possam alcançar algum desenvolvimento. No entanto, raramente vão além dessa generalização, uma vez que o quadro neurológico desses meninos e meninas varia drasticamente. “Mesmo assim, muita gente ficou comovida com a situação desses bebês quando as imagens surgiram, em 2016”, explica Sérgio Luiz Ribeiro Souza, juiz-presidente da Coordenadoria Estadual das Varas de Infância e Juventude do Rio. “O que não deixa de ser surpreendente, porque a maioria dos candidatos a pais adotivos só procura bebês brancos e saudáveis.” VEJA RIO traz nas próximas páginas cinco exemplos de pessoas que contrariaram o senso comum e transformaram em seus próprios filhos crianças abandonadas pelos pais biológicos e deixadas em abrigos.

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(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“O Kauan mudou muito desde a adoção. Mas nós mudamos mais.”

Joana Darc Rodrigues

Com dois filhos adolescentes, a cabeleireira Joana Darc Rodrigues, 40 anos, costumava dizer que só voltaria a ter um bebê se ele fosse deixado na porta de sua casa, em Barra Mansa. Era uma ideia tão implausível que nem ela nem o marido, o torneiro mecânico Renê de Souza, 43, imaginavam que um dia pudesse virar realidade. Pois virou. Há três anos, um vizinho conhecido nas redondezas por seu hábito de consumir crack tocou a campainha da casa de Joana com Kauan no colo. Na época, o menininho tinha 3 meses e havia sido abandonado pela mãe, também dependente química. Ao olhar para o bebê, Joana percebeu a má-formação da cabeça, mas, como não tinha informações da mãe, não sabia exatamente se a microcefalia era decorrente do zika vírus. O parto fora difícil, e o menino havia sofrido duas paradas cardiorrespiratórias e dois AVCs, que deixaram sequelas. Sensibilizada com a fragilidade do garoto, Joana aceitou cuidar dele por algumas semanas. Passado o prazo combinado, o pai do bebê alegou que não podia pegá-lo de volta. Preocupada, a cabeleireira marcou várias audiências no fórum da cidade para, com o pai da criança, formalizar a situação. Mas ele faltou a todas. “Embora o Kauan vivesse com a gente e tivesse se tornado a paixão da família, eu me via como se fosse sua madrinha”, recorda Joana.

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No início de 2017 veio o baque. A mãe biológica do menino, que tem outras duas filhas, foi alvo de uma ação da Vara da Infância e acabou sendo denunciada por negligência. No seu depoimento, ela falou de Kauan. Em poucas horas, um oficial de Justiça bateu à porta da casa de Joana e levou o garoto embora. Por quinze dias, Kauan ficou recolhido em um abrigo. “Percebi que era, de fato, mãe dele. Foi uma dor inexplicável”, lembra Joana. Ela chamou os filhos, Heitor, 18 anos, e Guilherme, 12, e perguntou se estariam dispostos, na sua falta, a assumir os cuidados com Kauan. Ouviu um sonoro “sim”. Contratou um advogado e duas semanas depois estava novamente no fórum. Na audiência judicial, diante de Joana, Kauan gritou e se balançou para expressar sua satisfação em revê-la, levando a juíza às lágrimas. Embora a cabeleireira tivesse ficado com Kauan de forma irregular, a Justiça entendeu que era um caso excepcional, e o processo de adoção foi iniciado. Quando chegou à casa de Joana, Kauan só mexia os olhos e tinha muitas crises convulsivas. Hoje, ri muito e fica em pé apoiado nos móveis. “Ele mudou muito. Mas nós mudamos mais”, diz a mãe.

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(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“Hoje, os problemas parecem pequenos.
A Maria Eduarda me ensina isso todos os dias.”

Sheila Novaes

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A psicopedagoga Sheila Novaes, 39 anos, sempre sonhou em ser mãe. Fez tratamentos para engravidar até que finalmente, ao lado do marido, o engenheiro Lawrence Luz, 40, decidiu partir para a adoção. Durante o processo, o casal aceitou participar de um grupo que buscava pais, entre os já habilitados pela Justiça, para menores que necessitavam urgentemente de uma família — embora sonhasse com uma criança saudável de até 5 anos. Em 2016, os dois foram convidados a conhecer Maria Eduarda em um abrigo. A garotinha, com 6 meses de idade, havia sido abandonada pela mãe depois de ter nascido prematura e passar noventa dias em uma UTI. Além de ter microcefalia, a menina nasceu sem uma parte do cérebro, o que lhe causa dificuldade de cognição e afeta o equilíbrio. Ainda que na época houvesse muitos casos de má-formação em decorrência do vírus da zika, os exames de Maria Eduarda também apontaram para a síndrome alcoólica fetal (SAF), ocasionada pelo consumo de bebida alcoólica na gestação. “Foi muito forte. Quando a vi foi como se ela me pedisse que a levasse dali. Desabei a chorar”, descreve Lawrence. “Ele foi pura emoção, eu fiquei muito receosa”, recorda Sheila. “Tudo era uma incógnita”, completa, lembrando que a menina nascera com 610 gramas e naquele momento estava só com 2,9 quilos. Embora não tivessem o compromisso de adotá-la, no mesmo dia eles deram início ao processo e a levaram para casa, na Zona Oeste do Rio. Os avós, tios e primos fizeram uma festa para recebê-la. Cada mês subsequente de Maria Eduarda, atualmente com 2 anos, foi comemorado com bolo e velinhas. Cercada de carinho e de muitos cuidados médicos, a menina já anda e entende tudo a sua volta. Sheila, como várias mães de crianças com quadro neurológico severo, parou de trabalhar. “Antes eu era dona do meu tempo, mas sentia um enorme vazio. A vida deu uma guinada de 180 graus. Hoje, os problemas parecem pequenos. Ela nos ensina isso todos os dias”, diz.

FELIPE FITTIPALDI
(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“Dizem que temos muita coragem. Não é coragem, é amor.” Luciana Ouverney

“É para Alice!”, exaltou-se, sem disfarçar o espanto, uma funcionária da instituição onde a menina de 9 meses vivia desde que havia nascido. Nenhum candidato a pai ou mãe adotivos a tinha visitado antes. Contrariando toda e qualquer expectativa, a enfermeira Luciana Ouverney, de 42 anos, e o biólogo Thiago de Paiva Nunes, 37, depois de um ano de espera na fila de adoção, decidiram rever os planos e dispuseram-se a conhecer e, quem sabe, oferecer uma nova vida a uma menina especial. Quando deu entrada no processo de habilitação para adoção, o casal idealizava uma criança de zero a 5 anos, sem distinção de raça ou sexo, mas saudável. Nascida no pico do surto de zika vírus, Alice é portadora de microcefalia e paralisia cerebral. Também é sobrevivente de uma gestação para lá de conturbada — sua mãe biológica não fez pré-natal, tomou medicamentos abortivos e usou drogas. “Quando a vi, percebi que filho a gente não escolhe, tem”, lembra Luciana, sem conter o choro. “Pode soar piegas, mas naquele momento parecia que o mundo tinha parado e alguém estava nos entregando a nossa filha”, acrescenta Thiago, que já é pai de Yago, de 14 anos. A enfermeira, na ocasião, havia sofrido três abortos espontâneos e nutria o desejo de ser mãe. Uma semana após a emocionante visita, o casal formalizou a ação de adoção.

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Ter um filho que exige cuidados especiais não é fácil. Thiago abriu mão de um dos empregos e Luciana reduziu os plantões. Os dois vão às lágrimas ao falar dos progressos de Alice, de 2 anos. Quando a conheceram, ela era praticamente estática. Agora já controla o pescoço, presta atenção ao seu redor e toma uma mamadeira inteira sem se engasgar — um grande avanço em casos de microcefalia. A menininha também não tem mais crises de epilepsia, graças a medicamentos. “Se vai andar, se vai falar, não sabemos. Mas estamos fazendo o melhor para ela”, diz o pai. Como a maioria das crianças com comprometimento físico e neurológico, Alice precisa de estímulo profissional. Vendo os avanços da filha e diante da dificuldade de famílias mais carentes, o casal, que mora em Campo Grande, na Zona Oeste, decidiu criar o Instituto Alice. O projeto, que pretende atender 100 crianças com problemas semelhantes, é montado com a ajuda de voluntários e doações. “Quando descobrem que somos pais adotivos da Alice, dizem que temos muita coragem. Não é coragem, é amor”, resume Luciana.

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(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“Acho que foi o João Gabriel quem me escolheu.
Ele olhava para mim como quem pede socorro.” Marilene da Silva

Com duas filhas adultas e seis netos, Marilene da Silva, de 54 anos, nunca pensou em adotar uma criança. Quando trabalhava como monitora em um abrigo municipal, chegou a pedir à direção do local que a transferisse para a área administrativa porque se emocionava demais com o sofrimento das pequenas vítimas de maus-tratos ou de abandono. Embora tentasse manter um distanciamento, a chegada de João Gabriel ao local mudou a sua vida para sempre. O nascimento do menino, hoje com 3 anos, coincide com os primeiros registros do vírus da zika no país. Caso severo de microcefalia, ele chamava atenção por ter a cabeça muito menor que o normal, pela hipertrofia muscular aguda e pelo choro contínuo. “Eu soube que, ao dar à luz, a mãe biológica, uma usuária de drogas, disse que não queria ‘aquele monstro’ e fugiu do hospital”, conta ela, com os olhos marejados. Aos poucos, Marilene começou a se aproximar do bebê e quando percebeu estava indo ao abrigo até nos dias de folga. “Acho que foi o João Gabriel quem me escolheu. Ele olhava para mim como quem pede socorro. Fiquei receosa pela questão financeira, mas o amor gritava.”

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Aos 6 meses de vida, João Gabriel foi adotado por ela e seu marido, o jardineiro Joel Raimundo da Silva, de 57 anos, que vivem em uma residência modesta na Baixada Fluminense. Ao contrário do que ocorre na maioria dos processos do gênero, o casal iniciou os trâmites após conhecer a criança. Por se tratar de um caso da chamada adoção necessária, com chances mínimas de interessados, foi aberta essa exceção. Assim que chegou à nova casa, o garoto virou o xodó de toda a família. Uma parede do quarto do casal foi decorada com fotos de várias fases do caçula. Se o mundo de João Gabriel ganhou nova perspectiva, o de Marilene também. A monitora, que no momento está desempregada, dedica todo o tempo a levá-lo a médicos e terapias. Detalhe: de ônibus e carregando o menino no colo. Ela conta que chegou a ouvir de especialistas que o filho seria cego e surdo e teria poucos meses de vida. Hoje, o menino abre um sorrisão diante de estímulos e já esboça movimentos na tentativa de pegar a mamadeira. “Cada passo de formiguinha tem um valor enorme para uma mãe”, descreve Marilene. “A rotina não é fácil, mas me sinto completamente realizada e feliz”, emociona-se.

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(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“Não vou dizer que não me preocupo com o futuro dele. Mas é nosso filho e vamos lhe dar o que temos de melhor.” Américo Nunes Neto

A expressão emburrada do pequeno Gabriel, que lhe valeu o apelido de Delegado na instituição onde morava, mexeu profundamente com Josiline Moreira da Silva, de 42 anos. Bacharel em direito, ela já havia cumprido todos os requisitos para se candidatar a uma adoção, junto com o marido, o militar Américo Nunes Neto, de 36. Até que decidiu pesquisar, a princípio por curiosidade, o cadastro do programa Quero uma Família, do Ministério Público. O catálogo virtual, que pode ser acessado na internet por pessoas habilitadas, disponibiliza informações e fotos de crianças que dificilmente encontram candidatos a pais. Embora o propósito fosse adotar uma criança entre 2 e 8 anos, sem preferência de sexo, mas saudável, Josiline ficou hipnotizada com a expressão sofrida daquele bebê na foto. Ela, que trabalhava num escritório no Centro, passou dias com a imagem do garoto ampliada na tela de seu computador. “Ele não saía da minha cabeça, e marquei uma visita ao abrigo, antes mesmo de falar com meu marido. Depois, fiquei preocupada com a reação que ele teria”, lembra ela, que já tem uma filha adulta do primeiro casamento. “Josiline sabe que sofro muito quando vejo qualquer pessoa com alguma deficiência. Mas eu disse para a minha mulher: ‘Se você está assim, é porque é para ele ser nosso’”, conta Américo.

No momento em que ficou frente a frente com Gabriel, Josiline não teve dúvida de que seria sua mãe. O menino, que faz 2 anos neste mês e ganhou novos pais aos 8 meses, foi diagnosticado com microcefalia assim que nasceu. “É incrível, naquele mesmo dia parecia que eu o havia gerado. Comecei a me sentir como uma mãe da geração da zika”, diz ela. A mãe biológica é usuária de álcool e drogas e soropositiva. Além do perímetro da cabeça reduzido, o bebê tinha crises convulsivas e precisava tomar medicamentos especiais diante da suspeita de ser portador do vírus HIV — o que foi descartado após três exames. Biel, como é chamado pela nova família, ainda tem problemas respiratórios e no ano passado chegou a ficar nove dias na UTI em decorrência de uma pneumonia grave. Hoje, mais forte e com a expressão mais serena, faz a alegria da família a cada pequeno avanço. “Não vou dizer que não me preocupo com o futuro dele. Mas é nosso filho e vamos lhe dar o que temos de melhor”, afirma Américo.

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