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Lembranças de um tempo dourado

O compositor e produtor Roberto Menescal, um dos expoentes da bossa nova, resgata fotos que retratam os anos mais férteis da música brasileira e faz revelações em que não poupa astros como Chico Buarque ou Maria Bethânia ? nem os pés de Gal Costa

Por Letícia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h22 - Publicado em 26 set 2012, 18h21

Em meio ao manguezal que ocupa as bordas do Canal de Marapendi, na Barra da Tijuca, uma casinha de aparência simplória na Ilha da Pesquisa, com sua fachada amarela, passa despercebida entre as demais construções do lugar. No entanto, basta atravessar a porta para se dar conta de que se trata de um local bem pouco convencional. Por trás da modesta fachada, acessível apenas por meio de uma balsa, abre-se uma construção de amplo espaço interno decorado com poucos móveis. É o Albatroz, estúdio de gravação do músico, compositor e produtor Roberto Menescal. É nesse refúgio que um dos personagens mais influentes da história da música popular brasileira bate ponto diariamente há dez anos. O apelido do QG não poderia ser outro: “O barquinho”, título de um clássico da bossa nova composto por ele e Ronaldo Bôscoli. Nas últimas semanas, a habitual tranquilidade do local anda comprometida. Às vésperas de completar 75 anos, no dia 25 de outubro, ele prepara uma série de três shows no Teatro Net Rio. Ao mesmo tempo, revira sua coleção com cerca de 400 fotos que registram mais de meio século de histórias. Ele negocia com o Instituto Tom Jobim a digitalização das imagens, várias inéditas, além de reportagens antigas e partituras. “É um acervo riquíssimo, que só agora começa a ser avaliado do ponto de vista histórico”, diz Solange Kfuri, empresária do músico e coordenadora do projeto.

Em mais de cinquenta anos de atividade, justamente a fase mais fértil e criativa da MPB, Menescal desenvolveu uma trajetória peculiar. De figura central do movimento que transformou o cenário musical brasileiro (ele apresentou João Gilberto à turma que se reunia no apartamento de Nara Leão em Copacabana), tornou-se um dos mandachuvas do mercado fonográfico entre 1970 e 1986, como diretor artístico da gravadora Polygram (atual Universal). Nesse período, chegou a ter mais de 100 artistas sob sua tutela. Transitou por diversos estilos, lidou com toda sorte de intérpretes e compositores, dos mais temperamentais aos mais comedidos, e ajudou a alavancar a carreira de astros como Gal Costa, Elis Regina e Chico Buarque. “Como dizia um amigo, eu era um rabo de cometa, pois vivia atrás de uma estrela”, comenta o músico, que guarda más lembranças de alguns desses medalhões. É natural que, com esse passado, tenha virado um arquivo vivo sobre os bastidores da MPB. Nas próximas páginas, o leitor encontrará uma seleção de dez fotos da coleção de Menescal, em que ele aparece ao lado de ícones que vão de Maysa a Xuxa. As imagens estão acompanhadas por depoimentos reveladores e surpreendentes. São registros preciosos de um tempo dourado.

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“Em meados dos anos 70, Clara Nunes e Beth Carvalho estavam no auge. E eu queria, no elenco da Polygram, uma cantora de samba, de preferência mulata. O Jair Rodrigues me falou sobre a Alcione, que era crooner de uma casa noturna da Galeria Alaska. Ela cantava jazz e tocava clarinete. Fui até lá, me apresentei como diretor da gravadora e a convidei para fazer um teste cantando samba. ?Não sou sambista?, respondeu ela, secamente. Aos poucos a convenci a gravar, e fizemos um disco compacto muito bom. Logo depois aconteceu a temida convenção anual de vendas da gravadora, quando fazía­mos um balanço geral e enxugávamos o cast de artistas. A direção decidiu tirar a Alcione, que nem tinha disco gravado ainda. Marquei uma reunião com ela, mas, em vez de dispensá-la, propus a gravação de um LP. Comprei briga com os executivos, pois tinha certeza de que ela ia estourar ? e foi o que ocorreu. Ficamos amigos, e desde então ela só me chama de ?chefinho?.”

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” Tive a sorte de estar ao lado de alguns artistas quando eles chegavam ao auge. Com o Chico, foi no LP Construção, de 1971. A música-título do álbum tinha sete minutos de duração, numa época em que só se gravavam no máximo três. Briguei muito para manter o tempo original, e ainda fizemos uma superprodução no estúdio com mais de oitenta músicos. O Chico teve uma carreira bacana na Polygram até a chegada da gravadora alemã Ariola. Ele havia acabado de renovar conosco por três anos quando recebeu uma proposta. Pediu para ser liberado, mas não dava. Sugeri então que o contrato fosse rescindido com um disco em espanhol. Foi outra guerra com a direção, mas fechamos o acerto. Aí aconteceu algo que nunca entendi. A canção Bye, Bye, Brasil, que fizemos juntos, ganhou o prêmio de melhor música de 1981 da Rádio JB. A cerimônia foi no Copacabana Palace, e Chico mandou um representante. Quando subimos juntos ao palco, ele disse: ?O Chico agradece a homenagem, mas avisa que não veio porque não poderia receber um prêmio diante de alguém que impede a continuidade de sua carreira?. Foi um choque, mas fiquei calado. Vários amigos dele, como a Simone, me apoiaram e disseram que eu tinha de me manifestar. Não disse nada e nunca mais falei com o Chico. Naquele momento, gostaria de entender o que houve. Hoje não tenho o menor interesse em encontrá-lo.”

Bethânia sempre foi muito exigente, o que tornava nossa relação bastante difícil. Em 1977, ela lançou o álbum Pássaro da Manhã, que tinha a música Teresinha, de Chico Buarque. Quando o disco já estava nas lojas, ela me ligou para dizer que não havia gravado uma parte inteira da canção. Propus que refizéssemos a gravação com a versão completa, para uma nova fornada. Ela concordou, mas exigiu que eu retirasse todas as cópias que já estavam na praça, algo em torno de 500?000 unidades. Prometi tentar e ouvi como resposta o seguinte: ?Não quero que você tente, quero que você tire?. No fim, conseguimos recolher em torno de 50?000. Nos anos seguintes, qualquer coisa relacionada com ela era motivo de tensão. Como proibia todo mundo de entrar no estúdio quando gravava, eu não ia. Ela reclamava e dizia que a determinação não valia para mim. Mas como adivinhar? Nos anos 80, fiz duas propostas a Bethânia: gravar um LP só com músicas de Roberto Carlos e se tornar 100% dona de sua obra. As duas ideias foram recusadas. Anos depois, o que aconteceu? Em 1993, ela fez um disco inteiro dedicado ao rei, o mais vendido de sua carreira. E hoje ela é uma artista independente, com selo próprio. A lição que tirei disso tudo é que a relação entre músico e gravadora é sempre conflitante. No caso da Bethânia, infelizmente, não consegui ter um bom relacionamento.”

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“Vi a Gal pela primeira vez no Festival da Canção, em 1966. Ela vestia uns paninhos verdes e rosa, parecia uma integrante da Mangueira. Fiquei louco por ela. Quando entrei para a Polygram, a Gal já estava na gravadora, mas ainda meio indefinida quanto ao seu estilo. Aos poucos, a gente foi achando, mas até isso acontecer houve muitas brigas. Ela gostava de cantar descalça e usar uns vestidinhos hippies. Certa vez, durante o show Gal Canta Caymmi, ela pegou o violão e cruzou a perna para apoiar o instrumento. Quando vi aquele pé descalço, preto de sujeira do palco, fiquei traumatizado. Disse que era hora de mudar, calçar salto alto, fazer uma capa de disco com um grande fotógrafo em vez dos amigos da Bahia. Mas ela recebia muito mal essas sugestões. A virada só veio com o disco Gal Tropical (1979), que vendeu 1,2 milhão de cópias, contra a média de 100?000 dos trabalhos anteriores.”

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” Eu estava em uma fase muito produtiva, com o Ronaldo Bôscoli como parceiro, mas sentia que a bossa nova precisava de um artista de renome que desse apoio ao movimento. Então me encontrei com a Maysa, mostrei nossas músicas. Ela amou O Barquinho. O engraçado é que ela era a antítese dessa canção. Maysa era Meu Mundo Caiu mesmo. Gravado o álbum, passamos para um outro patamar no mercado. Logo após o lançamento, viajamos para a Argentina. Fazíamos shows todo dia. O combinado era seguir depois para o Uruguai, mas eu não aguentei e voltei para o Brasil, tamanha a loucura da convivência. Maysa e Bôscoli, que estava noivo da Nara Leão, começaram a ter um caso ali. Os dois eram muito doidos, viravam noite, bebiam demais e aprontavam. Havia uma tensão constante entre eles, e às vezes começavam a brigar por nada. Quando anunciei que voltaria, eles ficaram chateados, mas entenderam.”

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Caetano sempre foi cordato, sabia o que queria e o que era possível fazer. Ele nunca me pediria para colocar uma orquestra de 100 músicos dentro do estúdio. Também não tinha preocupação com o lado comercial de sua obra ou com dinheiro. Era do tipo que saía de casa para a gravadora com as notas contadas para pagar o táxi. Quando possuía material suficiente para gravar um disco, ele me ligava e íamos trabalhar. A única coisa que eu dizia era que, se ele quisesse vender muito, tinha de pensar num projeto com repertório coerente, fosse de samba ou qualquer outro estilo musical. Para os compositores, esse tipo de escolha é feito de forma diferente, tudo gira muito em torno de sua criação. No caso de Caetano, isso aconteceu com Fina Estampa (1994), que vendeu mais de 1 milhão de cópias. Essa guinada também teve participação fundamental de sua ex-mulher, a Paula Lavigne, que organizou a vida profissional dele. Os artistas, de maneira geral, precisam de uma pessoa assim. Nem todos têm o dom da Maria Bethânia, que administra muito bem sua carreira.”

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” Durante os dezesseis anos que passei na Polygram, deixei de lado minha carreira de músico. Não toquei nem compus nada. Era impossível conciliar as duas funções. Um dia, a Nara disse que já estava na hora de eu ganhar um prêmio pelos anos de trabalho na gravadora. ?Mas que prêmio??, perguntei. Ela disse que seria a gravação de um disco dela só com voz e violão. Nara sempre quis fazer algo assim, mas as gravações acabavam ganhando um arranjo de cordas, um baixo ou outra coisa qualquer. Eu topei. Enquanto estruturava a obra, pensei em dois músicos para acompanhá-la. Ela recusou e disse que esse papel seria meu. E nem violão eu tinha mais! Em 1985, lançamos Um Cantinho e um Violão, meu último LP pela gravadora. Logo depois fizemos shows pelo Japão. Foi uma turnê bacana, e lá percebi que ela estava com algum problema grave de saúde. Quase em seguida, deixei a empresa para me dedicar a ela, minha amiga desde os 12 anos de idade, uma irmã para mim. Esse foi um momento difícil da minha vida, mas ao mesmo tempo me trouxe essa alegria, que foi voltar a tocar. Fiz mais três discos com Nara, que mesmo doente (tinha um tumor cerebral) continuou trabalhando. O fato de ter sido ela a me trazer de volta para a música tem um significado e tanto.”

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” Conheci a Xuxa ainda como apresentadora da TV Manchete. Na época, ela se preparava para deixar a emissora e ir para a Globo. A Polygram havia suspendido as contratações, em decorrência de uma crise. Resolvi chamá-la assim mesmo, mas a direção se recusou a custear o LP. Pedi gravações emprestadas a artistas da casa como Caetano (Leãozinho) e Erasmo Carlos (Pega na Mentira) e coloquei a Xuxa cantando com eles. Fiz doze faixas sem gastar praticamente nada, e ela adorou o resultado. O disco Xuxa e Seus Amigos (1985) vendeu 500?000 cópias, um número excelente. Eu já estava para sair da gravadora quando houve a convenção de vendas anual de 1986. Levei a Xuxa e foi um frisson. Quando todos esperavam que eu anunciasse um segundo LP, avisei que estava rescindindo o contrato dela porque a empresa não apostou no seu potencial. Xuxa fechou com a Som Livre e, nos três anos seguintes, vendeu 12 milhões de discos.”

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” Sempre adorei Roberto e Erasmo, mas não podia dizer isso em público porque eu era da bossa nova e eles da jovem guarda. Minha turma não ia gostar. Quando a Nara Leão confessou que gostava deles, propus que a gente fizesse um disco com músicas dos dois. Imagine uma cantora de bossa nova fazendo isso. E o disco ganhou o nome de …E que Tudo Mais Vá pro Inferno. Ao lado de Nara, pude externar minha admiração por eles. Depois, o Erasmo acabou indo para o elenco que eu administrava na Polygram. Com o Roberto tenho uma história ótima. Quando ele surgiu, todo mundo achava que imitava o João Gilberto por causa do timbre meio nasalado. Fui encarregado de falar que isso estava pegando mal para ele, pois o João já era uma estrela e Roberto, não. Sugeri que revisse o jeito de cantar e ele ficou de pensar no assunto. Um ano depois, nós nos encontramos no aeroporto e ele me agradeceu pelo conselho.”

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” Era o nosso Elvis Presley. Ele pertencia ao elenco da Polydor, o selo mais popular da Polygram. Em um programa de reestruturação da gravadora, herdei todos os oitenta artistas desse braço, cortei a maioria e fiquei com apenas quinze, entre eles o Sidney Magal. Mas a verdade é que não sabia o que fazer com aquele cantor. O estilo musical dele, mais popular e com um toque flamenco, não tinha nada a ver com o dos meus outros artistas. Então contratei um produtor argentino, o Roberto Livi, que foi fundamental na carreira do Magal. De cara, pediu 50% de tudo. Seu segundo disco saiu em 1978, tendo como carro-chefe Sandra Rosa Madalena. O lançamento foi um estouro, e acomodamos Magal em um apartamento na Barra, perto da Polygram, que Livi ajudou a decorar. No corredor que dava acesso à suíte do cantor, mandou instalar um espelho de corpo inteiro. Cada vez que entrava ou saía do quarto, Magal se olhava, fazia poses, caras e bocas. ?Ele precisa disso?, dizia Livi. Essa parceria foi uma lição para mim. Deixei de lado o preconceito e aprendi que devemos bancar produções primorosas para esses cantores, como sempre fizemos para Chico e Caetano. Afinal, são os Magais da vida que sustentam as gravadoras.”

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