Como o título de Capital Mundial da Leitura pode mudar a história do Rio
Honraria vale até abril de 2026, mas legado tem validade ilimitada: cidade agora é parte de uma rede internacional comprometida em promover a leitura

Era uma vez uma cidade que, além de berço de escritores da magnificência de Machado de Assis, Lima Barreto e Cecília Meirelles, acolheu como filhos autores que aqui cresceram e apareceram. Entre eles, os mineiros Carlos Drummond de Andrade e Rubem Fonseca, o pernambucano Nelson Rodrigues e a ucraniana-pernambucana Clarice Lispector. Terreno fértil para as letras, no Rio germinaram movimentos como o neoconcretismo e gêneros como a crônica, além de instituições que ajudam a traduzir seu relevo literário, a exemplo da Academia Brasileira de Letras e da biblioteca Nacional. Pois eis que o município de tão iluminadas letras assumiu, desde 23 de abril, o posto de Capital Mundial do Livro, título da Unesco que vigora por um ano, abrindo um novo capítulo em sua vasta história de serviços prestados à cultura. “É uma oportunidade de promover políticas de incentivo à leitura, estimular o turismo cultural e valorizar nosso patrimônio imaterial”, celebra o secretário municipal de Cultura, Lucas Padilha, lembrando ser o Rio o primeiro a assumir tal protagonismo entre as cidades onde se fala português.
A democratização do acesso aos livros é fio condutor das iniciativas pensadas para que o título de Capital do Livro vá além da primeira página, deixando um legado duradouro. E que será muito bem-vindo. A pesquisa Retratos da Leitura, de 2024, mostrou que, nos últimos quatro anos, o Brasil registrou revoada de 6,7 milhões de leitores, o que desaguou em um infeliz constatação: pela primeira vez na série histórica do levantamento, o grupo de pessoas sem o hábito de ler já é maioria – 53% da população dizem não ter lido nem parte de um livro, incluindo aí a prateleira de didáticos, religiosos e a Bíblia. “Precisamos voltar a fazer do livro algo atraente. É uma causa nacional”, afirma Padilha, que alinha um acordo com o Ministério da Cultura para disseminar as medidas já implementadas aqui com sucesso – e as outras por vir. Além do investimento de 16 bilhões de reais na modernização das dezenove bibliotecas municipais, estão previstas viradas literárias, intervenções urbanas como a Book Parade, com artistas criando instalações em que os livros são fonte de inspiração, e festivais literários nas escolas de samba. Também está nos planos uma “popularização” dos imortais da ABL, sobre a qual o secretário dá um único spoiler: “Eles não vão estar só no Petit Trianon, mas também nos bairros, na praia.”, adianta.

O objetivo da prefeitura é aproveitar o ensejo para agitar a bandeira da leitura, dissolvendo a ideia de que lugar de livro é no silêncio da biblioteca, e só vale se debruçar sobre clássicos. “Nossas políticas culturais não serão fetichistas do papel e da letra impressa”, promete Padilha, com a atenção voltada também aos audiobooks. Tudo seguindo uma trilha mais lúdica, pela qual já enveredou a Bienal do Rio, que aposta em experiências multimídia inovadoras – evento decisivo, aliás, para dar gás candidatura carioca junto à Unesco. Em sua 22ª edição, que acontece entre 13 e 22 de junho, desta vez ocupando todos os pavilhões do Riocentro, a grande festa da literatura quer atrair 600 000 pessoas, menos apenas que o Réveillon, o Carnaval e o Rock in Rio. Na última edição, foram 5,5 milhões de livros vendidos. Os efeitos da pandemia fizeram os organizadores da Bienal pisar no acelerador para pôr de pé mudanças que foram se revelando necessárias para atrair à leitura jovens nestes ultra conectados tempos. “Cresceu a tendência em focar em experiências e entretenimento”, reconhece Tatiana Zaccaro, diretora da GL Events Exhibitions, que acelerou a chacoalhada na Bienal já havendo no horizonte do Rio o nobre posto de Capital do Livro. “Fizemos quatro anos em dois”, resume. Os esforços se refletem em novidades variadas, como a roda-gigante Literatura nas Alturas, em que cada uma das dezesseis cabines terá como tema um livro, um labirinto formado por universos literários que se encontram para uma imersão e uma Reading Party, na área externa. “Não tem nada parecido com a Bienal daqui no mercado editorial. Os autores internacionais ficam enlouquecidos”, orgulha-se Tatiana.

Ao ser reconhecido como Capital Mundial do Livro pela agência da ONU, o Rio extrapola fronteiras e ingressa na rede de cooperação internacional ao lado de cidades que receberam o título, como Madri, na Espanha, e Estrasburgo, na França, a última a habitar o panteão – paraíso dos bibliófilos que nos passou o bastão. A sucessora da sede carioca já foi escolhida: Rabat, no Marrocos. “Todas com o dever e o prazer de conversar sobre como promover a leitura”, diz Padilha, atento à experiência das demais. Em 2007, Bogotá, por exemplo, criou um programa para movimentar livrarias e bibliotecas com atividades gastronômicas e musicais. “Também queremos debater a importância de leis que regulamentem o preço dos livros, como ocorre na França e na Argentina, onde o valor vem impresso na capa”, fala o secretário. Que esta história não tenha apenas um, mas muitos finais felizes.
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Patrimônio literário: confira Locais que reforçam protagonismo carioca na literatura nacional
Bienal do Rio
Um dos mais concorridos eventos do calendário carioca – atrás do Réveillon, do Carnaval e do Rock in Rio -, na última edição reuniu no Riocentro mais de 600 000 pessoas, que levaram para casa cerca de 5,5 milhões de livros. Foram mais de 380 autores e 200 horas de programação, além da presença de 497 editoras, selos e distribuidoras.
Biblioteca Nacional
Considerada pela Unesco uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo e a maio da América Latina, foi fundada em 1810 com acervo trazido ao Brasil após a vinda da família real em 1808. Em seu prédio-sede, atende cerca de 15 000 usuários por mês. No acervo, de 9 milhões de itens, há até um exemplar da Bíblia de Gutenberg, de 1462.

Real Gabinete Português de Leitura
O estonteante prédio do arquiteto português Rafael da Silva Castro se destaca pela importância do acervo bibliográfico e atividades que desenvolve. Lá está a maior e mais valiosa biblioteca de autores portugueses fora de Portugal, com um acervo de 350 000 volumes. Entre as obras raras, uma edição de Os Lusíadas, de 1572.
Biblioteca Parque Estadual
Inaugurada pelo então imperador Dom Pedro II, em 1873, em 2014 a biblioteca pública estadual foi modernizada, ganhando o nome de parque. Guarda mais de 200 000 livros de ficção e não ficção, volumes de arte e quadrinhos, além de 20 000 filmes. Também conta com teatro, auditório, café e programação cultural.
Casa de Rui Barbosa
Abriga a biblioteca original do jurista e é uma das mais importantes instituições brasileiras de preservação de documentos, com itens catalogados no Registro Nacional do Programa Memória do Mundo da Unesco e também livros, correspondências e originais de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e Manuel Bandeira.

ABL
Fundada em 1897 por escritores como Machado de Assis e Olavo Bilac, nos moldes da Academia Francesa, a instituição tem como objetivo o cultivo da língua e da literatura brasileira. Composta por quarenta membros efetivos e perpétuos, é responsável pela edição de obras de valor histórico e literário e oferece diversos prêmios literários.