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Segredos do Gabinete

A digitalização de obras do século XIX pertencentes ao acervo de uma das mais importantes bibliotecas do Rio resgata preciosidades esquecidas do passado

Por Rafael Teixeira e Thayz Guimarães
Atualizado em 2 jun 2017, 13h03 - Publicado em 23 jul 2014, 12h41
Alexandre Macieira/Riotur
Alexandre Macieira/Riotur (Redação Veja rio/)
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Cronista prolífico de seu tempo, o escritor português Camilo Castelo Branco (1825-1890), autor de Amor de Perdição, dividiu-se entre os livros e o jornalismo. Em 1854, quase uma década antes de escrever sua obra-prima, aventurou-se na criação de um periódico batizado de O Bico de Gaz (assim mesmo, com z, conforme a grafia da época). Já na edição de lançamento, não escondia a ambição e destacava na primeira página que a missão do jornal era “acender o fósforo das luzes nas plagas escuras da ignorância”. Apesar das altas aspirações, o folhetim de oito páginas teve vida efêmera e durou apenas um número, do qual restaram três exemplares ? um na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, e dois no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio. Em ambas as instituições, a obra integra um conjunto de documentos raros, consultado por um número reduzidíssimo de pesquisadores. Ironicamente, O Bico de Gaz, de tão antigo e precioso, acabou esquecido. Agora, graças a um esforço empreendido por pesquisadores cariocas, escapa dessa espécie de maldição. A partir de setembro, poderá ser lido por qualquer pessoa conectada à internet. A obra é parte de uma coleção de 45 periódicos do século XIX com um total de 32?000 páginas disponibilizadas na rede. “Nosso acervo finalmente está ao alcance de interessados de todo o mundo”, comemora a especialista em literatura portuguesa Gilda Santos, coordenadora da iniciativa.

A empreitada do Real Gabinete franqueia a estudantes, acadêmicos e curiosos em geral um verdadeiro manancial de preciosidades. A maior parte é de origem portuguesa, até porque quase todas as publicações nacionais relevantes da época já integram o acervo on-line de outras instituições. Ainda assim, há títulos brasileiros presentes na lista, como O Beija-Flor, um curioso periódico dedicado a frivolidades, e o Museo Pittoresco Historico e Litterario, ambos editados no Rio. Algumas obras se destacam pelo valor histórico do texto, outras sobressaem pelo pioneirismo, seja na forma como eram produzidas, seja na abordagem dos assuntos (veja exemplos na pág. 32). No entanto, mais do que as qualidades acadêmicas ou estéticas, o grande apelo da coleção está na maneira como a sociedade brasileira era vista e compreendida em nossa antiga metrópole colonial. “A imprensa de lá estava muito atenta a nós”, diz Marialva Barbosa, professora da UFRJ.

Um bom exemplo desse olhar estrangeiro sobre as peculiaridades brasileiras é uma caricatura publicada no jornal Pontos nos II, em novembro de 1889, época em que Portugal era uma monarquia comandada pelo rei Carlos I. Assinado por Rafael Bordalo Pinheiro, o desenho mostra, sob o título Como Se Proclama uma República, o político Quintino Bocaiuva, vestido com um barrete semelhante ao dos jacobinos da Revolução Francesa, comunicando a deposição a Pedro II, no que o imperador sai de mansinho e toma um barco rumo à Europa. Com a ridicularização do monarca brasileiro, Pinheiro resume a frustração da parcela mais progressista dos portugueses com o cenário político de seu país ? a insatisfação com o reinado da dinastia Bragança acabaria em um banho de sangue dezenove anos depois com o assassinato de Carlos I e de seu filho e herdeiro, Luís Felipe.

Os historiadores costumam atribuir a uma série de inovações tecnológicas que surgiram ou foram popularizadas no século XIX as transformações que influenciaram diretamente o modo de vida que temos hoje. Entre elas, a imprensa ocupa lugar de destaque, uma vez que permitiu a disseminação de notícias e informações de forma rápida e em escala global. Ao mesmo tempo, lançou luzes para peculiaridades e aspectos do dia a dia de regiões consideradas remotas pelos europeus. Nesse sentido, o acervo guardado no Real Gabinete propicia um abrangente olhar sobre a vida nos trópicos, difundido não apenas entre os portugueses como também no resto da Europa. “A diversidade de documentos é tamanha que é difícil falar em uma visão única sobre o Brasil. Estamos lidando com um século inteiro de títulos e escritores”, diz Eduardo da Cruz, pesquisador envolvido no projeto. Um dos conjuntos mais reveladores sobre o Rio são as edições ilustradas, que frequentemente fazem referência às belezas naturais. Em Universo Pittoresco, de 1844, duas litogravuras que retratam paisagens cariocas são assim comentadas: “A natureza formando a baía do Rio de Janeiro parece ter querido reunir em um painel todas as belezas, que podem constituir a maior formosura de uma paisagem”. O mesmo veículo acompanhou as transformações urbanísticas ocorridas na capital fluminense no início do reinado de Pedro II. Era uma sucessão de empreendimentos que, segundo o periódico, “têm dado nestes últimos anos tal impulso à cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, que, se continuar do mesmo modo, em breve apresentará o aspecto de uma das mais belas e mais civilizadas capitais da Europa”.

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Realizada no decorrer de três meses, tempo considerado pequeno dado o volume de material, a digitalização revelou surpresas. Durante o processo, por exemplo, os pesquisadores descobriram um periódico perdido dentro da coleção encadernada de outro jornal. Tratava-se de um exemplar da publicação Antonio Maria, título de forte apelo político, encontrado no meio de um volume da coleção de Pontos nos II, o jornal da caricatura de dom Pedro. “Foi um erro de alguém na hora de encadernar que passou completamente despercebido. Afinal de contas, estamos falando de uma biblioteca com 177 anos”, explica Gilda. Feito no próprio Real Gabinete, o processo reuniu doze pesquisadores locais e dois funcionários de uma empresa especializada em digitalização de documentos. “Usamos uma tecnologia de captura de imagem que não desgasta o material”, diz Angélica Ferrão, coordenadora da intervenção digital. Numa primeira etapa, esse processo foi realizado com uma série de manuscritos, como são chamadas as obras anteriores à invenção da prensa, escritas a mão pelo próprio autor ou por terceiros. “Perdemos mais tempo processando 3?000 manuscritos do que as 32?000 páginas impressas, uma vez que o material era único e muito precário”, lembra Gilda.

A disponibilização on-line dessas publicações é a mais recente etapa de um projeto de revitalização do Real Gabinete, iniciado em 2001 com a criação do Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras. Com isso, a instituição se alinha a outras do Rio que se dedicam ao mesmo processo de criar um atalho para seu acervo. Uma das pioneiras foi a Fundação Biblioteca Nacional, que começou a escanear seus documentos há mais de uma década. Quem busca registros sonoros encontra no Instituto Moreira Salles um espetacular conjunto de 25?000 gravações digitalizadas de nomes como Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Garoto, Francisco Alves e Elizeth Cardoso. Na área de imagens, a instituição sediada na Gávea realizou o mesmo procedimento com todas as 70?000 fotografias. Recentemente, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage começou a converter desenhos, cartazes, folhetos, catálogos e fotos que contam sua história. No exterior, o trabalho de inserir acervos históricos na rede é mais antigo e reúne iniciativas que chegam a tornar tímidas as que ocorrem atualmente no Brasil. Apenas a Biblioteca do Congresso americano, por meio do projeto American Memory, vem disponibilizando desde os anos 90 um inventário que vai totalizar 160 ?milhões de itens.

Localizado em um dos prédios mais lindos e imponentes da cidade, na Rua Luís de Camões, próximo à Praça Tiradentes, o Real Gabinete foi criado em 1837, por iniciativa de 43 imigrantes portugueses. A ideia era formar uma biblioteca para ampliar os conhecimentos de seus sócios, basicamente lusitanos residentes no Rio, então capital do Império. Especula-se que a inspiração veio da França, onde, após a Revolução de 1789, começaram a surgir as boutiques à lire, estabelecimentos que emprestavam livros mediante o pagamento de uma taxa. A atual sede, com seu projeto neomanuelino do arquiteto português Rafael da Silva Castro, foi inaugurada em 1887, após oito anos de construção. Em 1900, o Real Gabinete deixou de ser um território apenas para os sócios e foi transformado em biblioteca pública. Atualmente, o acervo de mais de 350?000 volumes constitui a maior coleção de obras portuguesas fora de seu país. Boa parte dela, ressalte-se, ainda está por ser digitalizada. “Há uma série de periódicos que pretendíamos disponibilizar na internet, mas eles estão em estado tão precário que demandam uma restauração antes de qualquer coisa”, diz Gilda. Mais tesouros, portanto, ainda podem sair desse baú.

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