Pesquisa de plantas antigas revela criações secretas de Niemeyer
Arquitetos Celso Rayol e Marcos Sá encontraram a assinatura do colega ilustre em dois imóveis de Copacabana e um terceiro no Flamengo
O Planalto Central ainda era uma erma, vasta e poeirenta extensão de terra vermelha quando Christovam de Camargo fechou negócio com Oscar Niemeyer. Na primeira metade da década de 50, o poeta de tradicional família paulistana contratou o arquiteto que viria a projetar marcos inconfundíveis de Brasília para dar conta de empreitada mais modesta: desenhar um prédio na Rua Barão de Ipanema, a poucos metros da Praia de Copacabana. O bairro, cartão-postal da então capital federal, mantinha seu charme de balneário, mas já se transformava a olhos vistos, com dezenas de edifícios erguidos sobre pilotis tomando o antigo areal. Marca do modernismo, esse estilo específico de construção teve Niemeyer como expoente, mas, curiosamente, nenhum dos endereços da região que, hoje, são lembranças daquela época é conhecido como invenção do grande criador de Brasília. A autoria do projeto encomendado por Camargo — com sugestivos cobogós na fachada — foi esquecida com o tempo. Para complicar, não há menção ao trabalho no catálogo raisonné do arquiteto, um compêndio com todas as suas obras célebres. O segredo foi finalmente revelado por Celso Rayol e Marcos Sá. Em pesquisa sobre cerca de 100 edifícios, que dará origem ao livro Copacabana Modernista, os arquitetos encontraram a assinatura do colega ilustre em dois imóveis no bairro e um terceiro no Flamengo.
A intenção da dupla era, inicialmente, inventariar soluções construtivas interessantes. “Nosso estudo mostra que muitas referências presentes hoje em projetos arrojados já eram utilizadas há mais de cinquenta anos”, diz Rayol. No processo, ele esbarrou com os segredos de Niemeyer ao consultar, em arquivos da prefeitura, dezenas de plantas antigas, algumas já bastante deterioradas. Além do Edifício Camargo, no número 59 da Rua Barão de Ipanema, carregam a grife Oscar Niemeyer os prédios Pancreto, na Avenida Princesa Isabel, e José Tomás Nabuco, na Rua Barão do Flamengo. As três propriedades foram encomendas feitas por famílias abastadas. Esse detalhe em comum pode inspirar um esporte muito difundido nos dias de hoje: as teorias conspiratórias. Será que Niemeyer, notório e orgulhoso comunista, teria, por questões ideológicas, escondido parte do trabalho feito para a turma mais abonada? O arquiteto Ciro Pirondi, presidente da Fundação Oscar Niemeyer, descarta a possibilidade. A falta do registro estaria mais relacionada a certo descuido do gênio modernista com a própria obra. Pirondi lembra da demolição de um prédio do arquiteto em São Paulo, notícia que consternou a todos no escritório, com exceção do chefe. “Ele não tinha problemas com isso. No mesmo período, concebeu as sedes da Editora Bloch e do Partido Comunista Francês, duas instituições de orientações políticas opostas”, compara.
No enorme Edifício Pancreto, bem diante de quem sai do Túnel Novo em direção à Praia de Copacabana, a empena revestida de cerâmica — hoje em parte bloqueada por um gigantesco outdoor — lembra muito as soluções determinadas por Niemeyer para os prédios da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. No Flamengo, a obra feita para descendentes do abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) traz pedras portuguesas que integram a calçada à portaria do edifício de uma maneira que é bem típica do estilo de seu autor. Alguns dos inventivos conceitos modernistas que consagraram Niemeyer, no entanto, se revelaram pouco práticos. É o caso, no José Tomás Nabuco, de esquadrias de madeira acionadas por movimentos complexos, cuja manutenção é extremamente dispendiosa. No Camargo, observa Celso Rayol, as belas estruturas vazadas da fachada tinham aberturas menores, o que poderia dificultar a vista e a entrada de luz. Esses cobogós, aliás, escondem outra característica dos grandes apartamentos do endereço, que têm 178 metros quadrados cada um: a frente do prédio, espaço nobre, segundo o senso comum, é dividida entre as áreas social e de serviço. Definitivamente, isso é coisa do camarada Niemeyer.