Pais da nadadora Sarah Corrêa lutam por justiça
Atropelada enquanto esperava um ônibus em Vargem Pequena, a jovem de 22 anos é um retrato brutal da selvageria e da impunidade ao volante
No início da noite do feriado de 1º de maio, a ex-modelo Maria de Fátima Alves Gonçalves, de 55 anos, falava ao telefone quando ouviu a campainha da casa, no bairro de Vargem Pequena, Zona Oeste. Ao atender à porta, deparou com um comerciante da vizinhança. Nervoso, ele disse que havia acontecido um acidente ali perto envolvendo sua filha, a nadadora Sarah Gonçalves Corrêa, 22 anos, medalhista nos Jogos Pan-Americanos de 2011. A jovem havia saído cerca de uma hora antes para se encontrar com uma amiga no Leblon. Desesperada, Maria de Fátima foi até o local do acidente, junto ao ponto de ônibus onde a moça deveria ter tomado a condução. Deparou com uma cena aterradora. Uma multidão cercava um Renault Logan branco estatelado contra um muro com o corpo de um homem por baixo — era o técnico eletricista da Comlurb Paulo Coelho Soares, 58 anos, que morreu na hora. Imediatamente, reconheceu a mochila e os fones de ouvido da filha sobre o capô do automóvel e começou a gritar por seu nome, até que um policial lhe disse que a jovem havia sido socorrida. “Ali começava o pior pesadelo da minha vida”, descreve a mãe.
Depois de procurar em vão pela filha em um hospital na Barra, Maria de Fátima finalmente localizou Sarah na emergência do Miguel Couto. Gravemente ferida, a atleta estava sendo atendida pela equipe de cuidados intensivos. A mãe esperou cerca de uma hora e quarenta minutos sem nenhuma informação. Finalmente os especialistas lhe explicaram que a jovem havia sofrido fratura exposta na perna esquerda, perfuração na lateral esquerda do tórax e traumatismo craniano. E o pior: a nadadora, dona de uma coleção de 450 medalhas, já apresentava morte encefálica. “Fui para o banheiro, tranquei a porta, ajoelhei e chorei. Chorei como nunca na vida”, disse ela na quarta-feira (6). Em seguida, os médicos autorizaram Maria de Fátima e o marido, Benedito Bismark Corrêa, 48 anos, a ver Sarah. A atleta, com sangue nos cabelos, respirava com a ajuda de aparelhos. “A gente não tinha noção ainda, mas foi nossa despedida. Cada um ficou de um lado, fizemos carinho no rosto dela, pegamos na sua mão e, à nossa maneira, era como se disséssemos adeus”, recorda a mãe. “Os médicos falaram que nada mais podia ser feito, mas eu não queria acreditar, só queria pedir para todo mundo rezar e ver se ela voltava.”
Poucos minutos depois de desligarem as máquinas e de o óbito da filha ser declarado, Maria de Fátima finalmente extravasou sua revolta. Nas redes sociais, chamou o motorista do veículo de “maluco bêbado”. Uma câmera instalada em um imóvel próximo ao local do atropelamento, na Estrada dos Bandeirantes, registrou o automóvel surgindo em alta velocidade e realizando uma ultrapassagem indevida pela direita. Em questão de segundos, o motorista Diogo Barreira Brito, 29 anos, perde o controle do carro, dá uma brutal guinada à esquerda, cruza a faixa em sentido contrário e avança sobre a calçada, exatamente no local do ponto de ônibus. À luz precária da imagem é possível ver dois vultos sendo atingidos. Testemunhas contam que Brito desceu do automóvel visivelmente alterado e abandonou o local imediatamente, sem prestar socorro às vítimas. “Acidente é uma fatalidade. O que aconteceu com minha filha foi um assassinato”, afirma Maria de Fátima. “Não vou sossegar até que o responsável pague por isso. Neste domingo vou ter meu primeiro Dia das Mães sem minha filha. Esse dia, para mim agora, vai ser de lutar por justiça”, diz a ex-modelo, que é mãe também de outros dois rapazes.
A morte estúpida na Estrada dos Bandeirantes interrompeu uma carreira promissora nas piscinas. Sarah começou na natação aos 6 anos e competiu por clubes como Fluminense, Flamengo e Minas Tênis Clube. Foi campeã brasileira dos 1 500 metros livres em 2010 e sul-americana no revezamento 4 por 200 no mesmo ano. Em 2011, conquistou a medalha de prata do Pan-Americano, também no 4 por 200. Obstinada, no auge de seu treinamento, Sarah saía de casa às 4 e meia da manhã para estar na piscina antes das 6, e chegava a nadar 16 quilômetros por dia. No entanto, desestimulada com os baixos salários e a falta de patrocínio, decidiu arriscar uma nova carreira em outubro do ano passado. “A Sarah tinha um grande potencial, mas sua família não possuía tantos recursos para investir, como acontece com muitos atletas. O pai deu tudo o que ele podia, mas os clubes do Rio passam por uma fase difícil. Dentro das possibilidades, ela foi bem longe”, diz o nadador olímpico Luiz Lima, que participou dos Jogos de 1996 e 2000 e treinou com Sarah quando ela era uma adolescente de 15 anos. Favorecida pela beleza, pela estatura elevada e por medidas esculturais (64 quilos e 1,77 metro), a jovem começou a trabalhar como modelo em novembro do ano passado, e arrumou emprego em uma loja descolada da Barra da Tijuca para se manter enquanto a carreira não decolava. “Eu fiquei encantado com ela, e o fato de ser nadadora era bacana. Ela não possuía perfil fashion, mas tinha tudo para ser uma ótima modelo comercial, com chance de carreira internacional, um tipo exótico, de mistura racial”, define Sérgio Mattos, dono da agência 40 Graus, que a havia contratado. No entanto, mesmo tendo realizado seu primeiro desfile em Friburgo dias antes do acidente, Sarah ainda considerava a possibilidade de retornar à natação. “Ela planejava visitar o irmão mais velho na Espanha em junho e voltar a treinar no segundo semestre”, recorda o pai.
Nessas tristes coincidências que o destino costuma reservar, o atropelador Diogo Brito era praticamente vizinho da família de Sarah. Ao ver as fotos na internet, a mãe da nadadora reconheceu-o como frequentador da academia em que costumava se exercitar em Vargem Pequena. Em seu depoimento à polícia, o motorista alegou que não estava em alta velocidade e que perdeu a direção do carro por culpa de um buraco na pista. Disse também que teria deixado o local sem socorrer as vítimas por estar ferido. A polícia, no entanto, tem poucas dúvidas quanto à sua responsabilidade no acidente, tanto que pretende indiciá-lo por duplo homicídio doloso. “O depoimento dele está repleto de contradições e a perícia já constatou que ele trafegava a mais de 100 quilômetros por hora em uma via em que a velocidade máxima permitida é 60”, diz a delegada Adriana Belém, responsável pela investigação no 42º DP, no Recreio dos Bandeirantes. De fato, existia um buraco de obras junto ao meio-fio, mas, segundo a delegada, se não estivesse conduzindo o veículo de forma imprudente, o acidente não teria acontecido. Brito também tem antecedentes pouco abonadores. Já respondeu a processos por receptação de produto ilícito, violência doméstica, lesão corporal culposa de trânsito, lesão dolosa e desobediência. Ele se apresentou à polícia logo após atropelar suas vítimas, na noite do acidente. Foi liberado depois de depor. Voltou à delegacia na terça (5) para prestar novos esclarecimentos. Aos jornalistas que o inquiriam sobre sua responsabilidade, respondeu: “Vão lá e perguntem à Cedae sobre o buraco que havia na rua”. Até o fechamento desta edição, na quinta (7), Brito seguia com sua vida habitual como dono de uma pizzaria recém-comprada.
Mensurar a impunidade nos acidentes de trânsito no Brasil é tarefa complexa. A ONG Não Foi Acidente se dedica a reunir dados sobre vítimas de trânsito no país e acompanhar, na medida do possível, a punição dos culpados. Segundo a entidade, registram-se 52 200 mortes por ano (3 800 delas no Rio), entre atropelamentos e colisões. No entanto, o número de condenados atualmente cumprindo pena em regime fechado por homicídio no trânsito é ínfimo: apenas catorze pessoas, de acordo com informações apuradas pela própria organização. “A lei é excessivamente branda e quase sempre o responsável argumenta que não teve intenção de provocar o acidente”, diz o presidente da ONG, Nilton Gurman. “Mas quem bebe, abusa da velocidade ou fala ao celular ao volante sabe que está descumprindo a lei e que seus atos podem matar uma pessoa. Portanto, no nosso ponto de vista, tem culpa, sim”, avalia. A entidade propõe um projeto de lei com a tipificação do crime de homicídio doloso de trânsito, com pena de 5 a 8 anos. Atualmente, a maioria dos acidentes recai na categoria de homicídio culposo (em que não existe intenção de matar), cuja punição é de 2 a 4 anos, normalmente convertidos em serviços comunitários ou pagamento de cestas básicas. E, mesmo quando há punições mais pesadas, a infindável sucessão de recursos acaba poupando os condenados do cumprimento da pena. É o caso, por exemplo, de Rafael de Souza Bussamra, que atropelou e matou Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães, em 2010. Condenado em janeiro a sete anos de prisão em regime fechado e mais cinco anos e nove meses em semiaberto, ele passou apenas seis dias no presídio, pois a Justiça acatou recurso de seus advogados para que aguardasse julgamento do recurso contra a sentença em liberdade. “As leis têm de ser mais severas e a fiscalização mais forte e atuante. A Lei Seca tem cumprido seu papel, mas é preciso mais. Há que investir em educação de trânsito, punir com mais rigor e provocar de fato uma mudança de comportamento”, diz Fernando Diniz, presidente da associação de vítimas de acidentes Trânsito Amigo, que perdeu seu filho de 20 anos em uma colisão na Barra em 2003.
Para que a morte de Sarah não caia no esquecimento, amigos preparam manifestações em sua memória. Planejam um evento semelhante ao que foi realizado recentemente em protesto contra outros acidentes, como a morte do ciclista triatleta Pedro Nikolay, atropelado por um ônibus que furou o sinal vermelho na Avenida Vieira Souto. Estudante de direito e nadadora do Sesi de São Paulo, Jessica Bruin Cavalheiro tem convocado pelas redes sociais companheiros da nadadora de todo o Brasil para um evento na Barra, no próximo dia 16. “A ideia é juntar as pessoas, distribuir rosas brancas e panfletos sobre a impunidade nos crimes de trânsito. Não podemos considerar normal os indivíduos serem atropelados nas calçadas”, diz Jessica. Maria de Fátima já garantiu sua presença no protesto. Assim como outros pais que viram seus filhos morrer de maneira estúpida em acidentes que poderiam ter sido evitados, ela está decidida a transformar seu drama pessoal em uma bandeira. “Perder um filho é uma dor sem cura, mas a morte da Sarah não vai ser em vão”, diz. Que assim seja.