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Obstáculos no caminho

Trafegar pelas ciclovias do Rio lembra uma corrida de aventura em que não faltam buracos, pedestres desatentos, postes e até quiosques. É o preço que os cariocas pagam ao adotar uma forma de transporte saudável e ecologicamente correta

Por Daniela Pessoa, Ernesto Neves e Louise Peres
Atualizado em 5 jun 2017, 14h54 - Publicado em 5 ago 2011, 15h44

A atriz Diana Herzog, 31 anos, mora no Jardim Botânico e trabalha em Copacabana. Para ir de um ponto ao outro, ela pedala por um trajeto que inclui a orla da Lagoa e um atalho por Ipanema. São cerca de 10 quilômetros percorridos em meia hora. Parece um privilégio, mas a realidade é um pouco mais acidentada. Em seus deslocamentos, feitos com uma bicicleta americana com treze anos de uso, Diana já passou diversos apuros, desviando de buracos e pedestres desavisados, além de sofrer com problemas de sinalização. O primeiro tombo feio aconteceu no Arpoador. Era noite e a ciclista não percebeu as barreiras no caminho, uma sequência de três peças de concreto camufladas pelo pontilhado branco que demarcava a pista. Em outro passeio, precisou frear bruscamente para não ser atingida pela linha de uma pipa. Nova queda ? e cinco pontos no queixo. Da última vez em que foi ao chão, bateu com a cabeça no meio-fio, depois que uma corredora resolveu fazer a volta na ciclovia, sem olhar para trás. O capacete evitou algo além das escoriações de costume. “Minha rotina passou a ter um componente de alto risco desde que resolvi deixar meu carro na garagem”, diz Diana.

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Fernando Frazão
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Fernando Frazão
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Pedalar pelas ruas é um hábito cada vez mais popular entre os cariocas, principalmente na Zona Sul, a região mais estruturada para isso. Existem hoje 5 milhões de bicicletas no Rio. Trata-se de um número impressionante, principalmente quando se leva em conta que a frota motorizada é de 2 milhões de veículos. Temos também a maior malha de ciclovias do Brasil e a segunda maior da América do Sul, com 235 quilômetros, perdendo apenas para Bogotá, na Colômbia. Por qualquer ângulo que se olhe, a vida em duas rodas é uma opção que faz todo o sentido por aqui. Além de ser plana, a cidade oferece vantagens como o baixo índice de dias chuvosos por ano e as temperaturas amenas do outono e do inverno, perfeitas para atividades esportivas ao ar livre. Tudo muito bonito na teoria.

Fernando Frazão
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Na prática, a má conservação das pistas, o trânsito feroz e o perigo de assalto são apenas alguns dos obstáculos enfrentados. Se alguém deseja adotar, de fato, a bicicleta para seus deslocamentos, será obrigado a conviver com o desrespeito contínuo das autoridades ? e de uma parcela dos cariocas ? com a sua opção. Na página ao lado estão alguns flagrantes registrados pela nossa reportagem. Se não fosse trágico, seria engraçado. Tem gente, postes, carro e até quiosque (repetindo: quiosque) invadindo o espaço destinado aos ciclistas. Para piorar, não há nenhuma política de integração com outros meios de transporte. Na Zona Sul, por exemplo, apenas as estações do metrô localizadas no Cantagalo, em Copacabana, e na Praça General Osório, em Ipanema, possuem bicicletário (a primeira com dez vagas e a outra com trinta). O detalhe é que a entrada com os equipamentos nos vagões só é permitida nos fins de semana e feriados. Recentemente o ator Luiz André Alvim passou por uma situação bizarra na Cinelândia, Centro. Ele carregava, em um dia útil, um modelo importado da Inglaterra, extremamente dobrável, quando foi advertido por um funcionário de que não poderia embarcar com aquilo. Perguntou então se a entrada seria autorizada se estivesse com a bicicleta, que dobrada tem o tamanho de uma mochila, guardada de forma que ninguém percebesse o que era. A resposta foi sim. “Peguei um saco de lixo, coloquei-a dentro e entrei no trem”, conta.

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Embora não recebam a atenção devida, as ciclovias são uma parte vistosa dos compromissos que o Rio assumiu para receber a Olimpíada de 2016. A promessa é que a atual malha cicloviária chegue a 300 quilômetros no fim do ano que vem, patamar semelhante ao de cidades como a canadense Vancouver e a dinamarquesa Copenhague, centros urbanos incensados por sua qualidade de vida. Detalhado em 2010, o plano está atrasado. Diversos trechos com previsão de entrega entre janeiro e junho, como a conexão entre a Gávea e o Jardim Botânico, a Rua Teixeira da Silva, em Ipanema, e a ligação Copacabana-Botafogo pelo Túnel Velho, não foram executados. E pelo menos uma obra já entregue, a Bangu-Santa Cruz, está longe de ser um modelo de excelência. Construída ao custo de 20 milhões de reais, a via de 22 quilômetros apresenta defeitos como rachaduras no piso e falhas no sistema de drenagem. “Desse jeito, é como marcar um gol contra”, afirma o deputado federal Alfredo Sirkis (PV), um dos responsáveis pelo projeto que deu origem às primeiras pistas exclusivas, há vinte anos.

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Fernando Lemos
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Em meio à discussão sobre o aumento das emissões de gás carbônico na atmosfera e o crescente sedentarismo que provoca doenças crônicas, alternativas ao uso do automóvel surgem como opção óbvia para o transporte nas grandes cidades, principalmente em lugares onde há boas condições topográficas para isso. Mas criar uma infraestrutura que favoreça o ciclismo é apenas parte do desafio. A grande guerra é permitir a coexistência pacífica entre quem escolheu o guidão e os que permanecem ao volante ? sem esquecer, é claro, os pedestres e também sem falar dos motociclistas. Nesse aspecto, ainda temos um longo caminho a percorrer. Por aqui, o ciclista não é encarado como um elemento a mais na complexa engrenagem do trânsito. Na maioria das vezes é visto como um estorvo a ser tolerado e, não raro, combatido. Para a maior parte dos motoristas, a bicicleta está em posição inferior a qualquer outro veículo da hierarquia nas ruas e avenidas. “Confesso que muitas vezes acabo indo pela calçada, porque fico com medo dos carros”, diz a apresentadora Renata Ceribelli, que adotou as pedaladas como hábito há onze anos.

Fernando Lemos
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Em certa medida, tal cenário é provocado pela falta de informação sobre o tema. Desde 1997, o Código Nacional de Trânsito prevê o tráfego liberado de bicicletas por vias onde não existam faixa exclusiva ou acostamento. E o mais importante: quando estão nas ruas, os ciclistas têm a preferência sobre os carros. Quem desobedecer à lei cometerá falta gravíssima (7 pontos na carteira). Em uma ultrapassagem, os automóveis devem manter a distância mínima de 1,5 metro e reduzir a velocidade. A lei, porém, é quase uma peça de ficção. “Já cansei de ser jogado contra a calçada por veículos”, relata o empresário Roberto Maia, que há três anos se desloca sobre duas rodas do Corte do Cantagalo, onde mora, até Ipanema, seu local de trabalho. A desatenção dos pedestres é outra dificuldade para quem transita sobre duas rodas. Na orla, o espaço reservado aos ciclistas vira uma extensão da calçada. Crianças, animais e mesmo adultos caminham despreocupadamente por vias que deveriam estar sempre liberadas. “São pessoas empurrando carrinho de gelo, gente passeando de skate ou andando de lambreta”, enumera o ator Luiz Alvim. “Nos fins de semana, chega a ser perigoso andar por ali.”

[—FI—]

Mas é possível melhorar essa convivência, tornando a vida do ciclista carioca menos selvagem? Sim. Aprender com os exemplos de fora é o melhor caminho a seguir. Em Copenhague, cerca de 40% da população usa o meio de transporte para ir à escola, ao trabalho ou à universidade. Lá, a cultura da bicicleta é tão forte que, mesmo durante o inverno gélido, a maior parte dos adeptos (70%) continua pedalando. Tanto em Copenhague como em Amsterdã, na Holanda, e em outras metrópoles, a vitória das duas rodas e da convivência civilizada no trânsito é resultado de uma combinação que envolve campanhas de educação contínua da população e investimentos crescentes em infraestrutura. Programas governamentais estimulam desde cedo a prática do ciclismo, o respeito às regras de circulação e a convivência pacífica nas ruas. A prefeitura da capital dinamarquesa foi a primeira a promover um sistema de empréstimo de bicicletas, que depois se espalhou com sucesso por lugares como Paris. Em 2010, tentou-se copiar aqui o modelo francês com o Pedala Rio, mas a iniciativa malogrou. De acordo com a prefeitura, o serviço foi interrompido temporariamente e deve voltar em breve, expandido.

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Ilustrações Aline Ranna
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Na imensa maioria dos países onde o ciclismo vingou como alternativa, a participação dos governos foi crucial. Um alemão interessado em obter a carteira de habilitação para dirigir é obrigado a pagar uma taxa de quase 2?000 euros, o equivalente a 4?450 reais. Além disso, impostos sobre a compra de automóveis, taxas de registro e de estacionamento são propositalmente elevados. Embora a opção oficial pelas pedaladas não seja baratinha, trata-se de um investimento que vale a pena ? pelo menos nas contas das autoridades dinamarquesas. Calcula-se que, para cada quilômetro que se percorra de bicicleta, a cidade ganhe o equivalente a 40 centavos de real ? dinheiro economizado principalmente com tratamento de doenças decorrentes da poluição e do sedentarismo da população. Pela mesma conta, a cada 1?000 metros percorridos de carro perdem-se 20 centavos. Em Nova York, onde as ruas sempre foram dominadas pelos automóveis, está em fase de implantação uma vigorosa reforma que passou a privilegiar faixas exclusivas e ciclovias tanto na ilha de Manhattan quanto nos bairros mais distantes. Desde 2007, já foram instalados 410 quilômetros de vias especiais, rede que deve continuar a crescer nos próximos anos. De acordo com dados recentes, a partir do início do projeto o número de acidentes caiu 40% nos logradouros que receberam a novidade. “Não é só o trânsito que melhora. Diminui-se também o gasto com manutenção do asfalto”, afirma Zé Lobo, da ONG Transporte Ativo.

Fernando Frazão
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As vias exclusivas para os ciclistas começaram a se popularizar nos anos 80, com uma providencial ajuda do nascente movimento ecológico. Entusiasmados com o fenômeno que ganhava forma na Europa, ativistas como Sirkis, o secretário estadual de Meio Ambiente, Carlos Minc e o ex-deputado federal Fernando Gabeira defenderam a ideia de criar um sistema semelhante por aqui. Em 1991, a proposta finalmente entrou para o cronograma de obras do município e as pistas foram construídas durante o projeto Rio Orla, que previa a reurbanização do calçadão entre as praias do Leme e Recreio. A faixa ficou pronta a tempo de ser inaugurada para a Eco 92, a conferência que reuniu 108 chefes de estado na discussão de soluções sustentáveis para o desenvolvimento econômico.

Concluída meio às pressas, a implantação representou o primeiro impulso para a popularização do transporte sobre duas rodas, mas ficou praticamente restrita ao circuito turístico de praias. No ano seguinte, a expansão finalmente chegou a Botafogo e ao Aterro do Flamengo, ligando a Zona Sul ao Centro. Ainda assim, o ciclismo nesses anos todos tem sido muito mais uma diversão de fim de semana do que uma opção efetiva de transporte. Quase duas décadas depois, torna-se perceptível uma ligeira mudança nesse padrão. Movimentos como o Cycle Chic, inspirado em uma tendência que surgiu na Escandinávia e se espalhou por Paris e Londres, procuram demonstrar que é possível se acomodar ao selim e usar a bicicleta para ir a festas, teatros ou restaurantes (no verão, com o calor sufocante, a proposta fica um pouco mais complicada). “O objetivo é deixar claro que se trata de uma escolha absolutamente normal, uma questão de estilo de vida”, diz Tiago Leitman, ciclista convicto que divulga o movimento na cidade. Uma intenção nobre, sem dúvida, mas é bom lembrar que nas ruas do Rio o ciclismo ainda está mais para esporte radical do que para passeio de gente elegante.

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