Meu vizinho é miliciano: bandidos cruzam o caminho de moradores da Barra

Facções criminosas formadas por ex-PMs ganham escala e cercam de insegurança a vida de quem vive na região que já foi considerada porto seguro

Por Ernesto Neves
16 nov 2023, 20h00
Sob pressão: número de homicídios na região cresceu 150% em 2023 (Luoman/E+/Getty Images)
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O assassinato dos médicos Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro Almeida e Diego Ralf de Souza Bonfim, irmão da deputada Samia Bomfim (PSOL-SP), na madrugada de 5 de outubro, em um quiosque na Praia da Barra, escancarou a acentuada crise de segurança por que passa o estado e cercou de insegurança a rotina de moradores do bairro da Zona Oeste, justamente onde a bandidagem vem dando as cartas. Alvejados por engano no lugar de um miliciano, vítimas de uma guerra entre quadrilhas que se desenrola à luz do dia, os médicos atacados são um bárbaro sinal do descalabro que se passa em área tão valorizada da cidade. Com cerca de 300 000 moradores, a Barra e o Recreio estiveram, nas últimas semanas, sob um clima de conflagração que antes não transbordava neste grau para zonas fora das favelas dali. O descontrole se revelou ainda na queima de dezenas de ônibus do BRT no Recreio, em 23 de outubro (um recorde nessa modalidade em solo carioca), e em cenas de pânico no shopping Città América, quando seguranças do contraventor Rogério Andrade escoltavam o bicheiro até uma academia. Bem à vontade, o grupo exibia seu farto arsenal bélico. Quem passava pelo local imaginou se tratar de um assalto e acionou a polícia, que cercou o shopping, deteve três PMs e apreendeu armas.

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O cotidiano dos bandidos vem cruzando o caminho de moradores que até já se habituaram com episódios insólitos como o dos capangas no shopping. Aluna da mesma academia do contraventor Rogério Andrade, a médica F.W. (que, como todos os ouvidos nesta reportagem, mantém o anonimato para se preservar) conta que é comum avistar grupos de seguranças à paisana no estacionamento ou caminhando pelos corredores. “Mesmo dentro de um shopping, isso gera uma sensação de medo, como se a qualquer momento pudesse ocorrer um incidente. Fico especialmente preocupada quando estou com minha filha. O primeiro impulso é dar meia-volta e ir embora”, conta ela. “Hoje, a confiança na impunidade é tão grande que o bandido, o traficante, o miliciano não temem mais andar no meio da rua”, observa.

O crime fluminense vem passando por uma reconfiguração, processo no qual se torna cada vez mais profissional e conquista poder de fogo. Especialistas em segurança pública ressaltam que já não existe mais distinção entre a milícia e o tráfico de drogas, duas chagas que há décadas assolam os morros cariocas. Algumas das quadrilhas se fundiram e, se atuam cada qual em seu pedaço, copiam o modelo de negócios umas das outras com a ideia de expandir as atividades e multiplicar o lucro. Quando seguem juntas, o resultado é o que a polícia classifica como narcomilícia. Há parcerias, por exemplo, em favelas como Gardênia Azul, em Jacarepaguá, e Terreirão, no Recreio. “O Comando Vermelho (facção do tráfico) sempre teve distanciamento em relação às milícias, mas isso mudou. O que vemos hoje é um avanço do tráfico em regiões que eram dominadas por milicianos”, diz André Neves, da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco). Após semanas de escalada de violência, foi decretada pelo governo federal a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com o objetivo de pôr as Forças Armadas para vigiar aeroportos e portos — operação a ser observada de perto, dado que outras várias iniciativas do gênero não deram cabo de frear o crime.

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Bairro que vem atraindo milhares de cariocas em busca de boa qualidade de vida e preços mais convidativos do que os praticados na Zona Sul, oferecendo uma rotina protegida pelos muros dos condomínios, a Barra é palco agora de disputas entre facções como nunca se viu por lá. Mãe de dois meninos, a empresária R.C. se mudou para a região há uma década, motivada pela ideia de ter uma segurança que já não encontrava em outros bairros do Rio. Escolheu um condomínio na orla com toda a infraestrutura incluída, onde mora com o marido e os filhos, de 6 e 9 anos. “Três médicos foram assassinados num quiosque da praia cheio de gente. Não existe mais lugar seguro”, desabafa ela, que passou a manter a prole dentro do condomínio e tem evitado ir à praia. “Quando você se dá conta de que o seu vizinho pode ser um criminoso, que a qualquer momento a polícia vai entrar ali para prendê-lo, que pode ocorrer um tiroteio, isso traz medo e muda nosso dia a dia”, afirma. O miliciano Taillon Barbosa, que era justamente o alvo naquele dia em que os médicos foram assassinados, tem apartamento nas cercanias, num condomínio de luxo da Avenida Lúcio Costa, a apenas 700 metros do local da chacina.

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Operação militar: apoio a ações contra o tráfico de armas e drogas (Tomaz Silva/Agência Brasil)
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De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), de janeiro a agosto de 2023 foram registrados 72 homicídios na área do 31º Batalhão da Polícia Militar, que abrange, além de Barra e Recreio, Itanhangá, Joá, Vargem Grande e Vargem Pequena. O número representa um salto de 150% comparado ao mesmo período de 2022. Tornaram-se frequentes operações para prender bandidos na região, como as de 31 de outubro, quando oitenta policiais federais cumpriram mais de uma dezena de mandados de prisão preventiva e quinze de busca e apreensão. O administrador R.S. estava a caminho de casa, no condomínio Península, quando próximo dali ocorreu a abordagem da PF, na Avenida Abelardo Bueno, na altura do número 3.500, da qual Taillon saiu com algemas. Suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras, ele saía de um prédio comercial acompanhado de três homens armados que faziam sua segurança: um militar da reserva do Exército e dois policiais militares da ativa. “Quem deveria defender o cidadão está defendendo o bandido”, resume R.S. Como os outros, ele torce para que vizinhos que atuam no crime passem a morar onde deveriam — atrás das grades.

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