Maria Ribeiro: “As lives da Teresa Cristina são melhores que ansiolítico”
Segundo a atriz e escritora, a sambista inaugurou um novo formato, "um misto de bar com aula de história, missa de sétimo dia e Carnaval"
Como vocês devem saber, já faz um tempo que o mês de dezembro traz, além das retrospectivas e da angústia do Natal, as expressões que mais geraram procura nos 365 dias anteriores. Em 2019, por exemplo, as palavras do ano, segundo os editores dos dicionários Oxford e Collins, foram, não à toa, respectivamente, emergência climática e urgência climática.
Em 2020, apesar de ainda estarmos em junho, não há dúvidas de que os termos pandemia e quarentena — embora já tenhamos ultrapassado em mais do que o dobro os quarenta dias do nome em questão — certamente farão parte dessa eleição, quase sempre triste.
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No entanto, são as quatro letras que, juntas, compõem a palavra “live” as verdadeiras heroínas do meu confinamento improdutivo. As trocas virtuais não só me trouxeram de volta a capacidade de fazer parte da reconstrução de um significado, como também me devolveram o orgulho de preencher, seja em um formulário de hotel, seja em uma ficha do Greenpeace, que meu país de origem se chama Brasil, e que existe vida apesar da sombra bolsonarista e da ameaça da Covid-19.
Se você chegou até aqui e não tem a menor ideia do que eu estou falando — misturando termos em voga com patriotismo e coronavírus —, é por que você ainda não se rendeu a uma live. E, se já se rendeu, é porque ainda não se rendeu a uma live específica, a única, no caso, capaz de produzir essa mistura. O nome do milagre? Olha, não é porque eu sou feminista, mas, assim como nos países que melhor enfrentam o vírus, o milagre aqui é comandado por uma mulher.
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Teresa. Cristina. Não que a moça — que tem dois nomes porque não dava pra caber em um — seja novidade, longe disso. O talento da sambista da Vila da Penha é conhecido há tempos por quem gosta de música, mas o acontecimento ao qual me refiro diz respeito a mais sentidos do que só a audição.
A live da Teresa inaugurou algo novo, um misto de bar com aula de história, missa de sétimo dia e Carnaval, uma coisa que não existia antes dela e para a qual ainda não há batismo. É a live das lives, Rio de Janeiro.
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Há outras, claro, e também tenho feito uso da rapidez do Porchat e do violão madrugador do meu amigo Lucio Mauro Filho. Mas Teresa… Ah… Teresa colocou uma espécie de selo de oxigênio no termo de origem inglesa. Duvido que haja ansiolítico melhor.
Não há camisa do Flamengo do Gabigol, nem do Neymar da época do Santos, que produza tamanha satisfação. São goleadas diárias, caro leitor. Contra a tristeza, a morte, a falta de dinheiro, o desamor, contra inclusive a desigualdade que segue matando meninos como João Pedro. Porque Teresa, além de cantar, chora. Teresa chora, minha gente.
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Paulinho da Viola, Candeia, Gonzaguinha, João Gilberto, Milton Nascimento, Tom Zé, Cartola, Caetano, Gil, Belchior, Cazuza, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Clara Nunes: a seleção canarinho anti-Covid-19 tem nome e sobrenome e todos eles vêm da nossa música. Diariamente, às dez da noite, a sambista vascaína nos estende a mão e coloca no colo a bandeira verde e amarela. Não creio que haja fenômeno parecido em nenhum lugar do mundo. Aqui, a live pode ser chamada de laive, e não só porque é assim que se pronuncia…
Lives são transmissões ao vivo, mas carregam também um plural importante. Vidas. E não só em inglês. Pelo menos no meu dicionário atual. Porque eu, não sei vocês, mas eu, cá em minha incompletude, preciso de gente. Mais do que natureza, silêncio ou amplidão, meu respiro se dá nos encontros, e comunga na intersecção.
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Entre a ideia de Sartre, que diz que “o inferno são os outros”, e a desleitura de Valter Hugo Mãe, que substituiu em seu livro a palavra inferno por paraíso, fico com o escritor português. Que é angolano. E tem sido mais brasileiro que muitos brasileiros. Que nacionalidade também é compromisso com a língua, o oposto do “E daí?”. Mas, sozinhos em casa e comandados por um despresidente insensível, como continuar o baile?
Entrei no Instagram em 2012, e no WhatsApp assim que foi lançado, mas demorei a comprar a onda das lives. Via a repercussão nos jornais, recebia links dos amigos, percebia a movimentação intensa na parte superior do meu aplicativo que um dia foi de compartilhamento de fotos — e a essa altura já era praticamente um coração fora do peito. Ouvia falar das peças, dos shows, das aulas, mas nada me convencia. Só a palavra já me causava arrepios. Vou ler, pensei. Ulisses, A Montanha Mágica, é agora ou nunca.
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Um dia a tristeza veio mais forte. E eu bati na Teresa. E cantei com ela. E com todos que ali estavam. Juntos, temos chorado os mortos do nosso país e celebrado os vivos do nosso país. No momento, é tudo o que podemos fazer.