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Maria Ribeiro: “O futebol poesia também voltou pra ficar”

Vinte anos após o parto do primeiro filho, colunista e atriz tricolor comemora a maternidade: "Não há música ou crônica que dê conta de um amor como esse"

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
20 abr 2023, 19h00

Era outra vida. Eu morava no Jardim Botânico, tinha 26 anos e ouvia Los Hermanos. Não pensava em feminismo, nem na Amazônia, muito menos na morte. Não tinha dúvidas ou arrependimentos, e não pensava em garantias — nem na falta delas. Que, afinal de contas, pra mim, a linha parecia reta. A festa era aqui, justa e longeva, e o ingresso era bom. Acreditava em signo, em Deus, em família. Acreditava no Fluminense, na Sabrina Sato, no Woody Allen. Acreditava em livros devolvidos, histórias pra sempre, velhice, democracia. Acreditava no Jornal Nacional, em Fátima e William, nos finais felizes da Julia Roberts, e até na Viúva Porcina.

Meu parceiro, ao contrário, era o mundo em pessoa. Guerra do Iraque, ministro da Fazenda, luta de classes, primeiro governo do Lula. Eu fazia diário de grávida, ele lia os jornais, e íamos — banho tomado e roupa de jantar fora — fazer o único trajeto que nos mobilizava por igual. Escutar as batidas de um coração que nos fazia deixar todas as diferenças de lado, e vestir uma camisa que havia sido feita única e exclusivamente por nós dois: um filho. Um garoto que não tínhamos a menor ideia de como seria, mas que já chegava herdando time, posições políticas, e pastas e mais pastas de ultrassom.

E que programa maravilhoso, esse, de ver e ouvir um bebê! O som, que mais parecia de um cavalo em disparada, vinha acompanhado de um gráfico em papel fino que eu colecionava como se fosse um diploma. Minha dopamina era alimentada por likes invisíveis, e a hashtag maternidade estava havia meses nos trending topics de uma jovem mulher que logo, logo seria mãe.

“Cartão verde em mãos, lá fomos nós nos despedir daquela viagem lisérgica de ocupar o mesmo corpo por tanto tempo, uma saudade misturada com alívio e medo que me emociona e apavora até hoje”

O “logo, logo” durou. Quarenta semanas completas, ou três xixis por noite, ou nenhuma posição possível no lugar mundialmente reconhecido — a não ser para grávidas em fim de gestação — como de descanso absoluto. Nosso jogo de refluxos e almofadas entre as pernas foi até a prorrogação, até que um dia, finalmente, meu menino apitou. Cartão verde em mãos, lá fomos nós, meio dois, meio três, nos despedir daquela viagem lisérgica de ocupar o mesmo corpo por tanto tempo, uma saudade misturada com alívio e medo que me emociona e me apavora ainda hoje.

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Era madrugada do dia 30. Era março. Era 2003. Enquanto eu me posicionava de cócoras conforme tinha aprendido nas aulas de parto — sim, eu estudei até como se respira, e, na hora, obviamente, esqueci tudo. Paulo, meu então marido, dizia o tempo todo: “Maravilha que ele vai chegar antes do 31!”. E eu com dor e chocada com sua preocupação cívica, mas igualmente feliz. Pra ele, era realmente importante nosso rebento não fazer aniversário no mesmo dia em que se comemorava o golpe militar.

Nosso garoto nasceu no dia 30, e mais não falo porque tem palavras que não viram predicados, por mais que a gente se esforce. E olha que sou fã de gramática. Caetano está certo (quase sempre, aliás): melhor do que o silêncio, só João. Não há música ou crônica que dê conta de um amor como esse.

E tudo isso me veio à cabeça porque, no último dia 9 de abril, uma semana depois do vigésimo aniversário do parto do meu filho, e em pleno jogo do Fluminense, eu entendi uma coisa.

Vinte anos depois daquela ida ao hospital e daqueles inúmeros ultrassons, e olhando pros mesmos seres humanos que estavam comigo no dia mais forte da minha vida até ali, eu tive a certeza absoluta de que, mesmo tanto tempo depois, e divididos há tempos por uma separação, ainda somos aquela mesma família que morava numa rua com nome de árvore.

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A diferença é que agora nós temos Fernando Diniz. E que, graças ao 4 a 1 do dia 9 de abril, comemorei, em silêncio e gritando, as duas décadas de alegria dessa vida que agora, além de dois filhos, inclui Amazônia, feminismo, Flávio Dino e dois jogadores: um argentino chamado Cano e um brasileiro chamado Marcelo. Que o futebol poesia também voltou pra ficar.

PS: esta coluna é dedicada a Thiago Leonel Fernandes da Motta, cinegrafista tricolor assassinado à queima-roupa por um agente penitenciário logo após o Fla-Flu do dia 1º de abril.

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