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Marcelo Crivella tem maior índice de rejeição na prefeitura em 25 anos

Com 58% de reprovação, gestão tem começo marcado por crise, promessas desfeitas e polêmicas

Por Sofia Cerqueira e Saulo Pereira Guimarães
Atualizado em 15 jun 2018, 07h30 - Publicado em 15 jun 2018, 07h30
Crivella
(Yasuyoshi Chiba/AFP)

Personagem criado pelo dramaturgo Dias Gomes (1922-1999), Odorico Paraguaçu era um prefeito demagogo, cheio de ideias estapafúrdias, com retórica em tom de sermão e vocabulário nem sempre compreensível, mas contava com a adoração do povo da fictícia Sucupira. Em certos momentos, Marcelo Bezerra Crivella demonstra ter algumas das características do folclórico personagem da novela O Bem-Amado, com exceção de uma: a aclamação dos moradores do Rio de Janeiro. Em um ano e meio à frente da prefeitura, o bispo licenciado da Igreja Universal conseguiu o feito de se destacar como o mandatário com a maior taxa de rejeição dos últimos 25 anos — em comparação com o mesmo período dos três mandatos de Cesar Maia, um de Luiz Paulo Conde e dois de Eduardo Paes. De acordo com a última pesquisa do Instituto Datafolha, de 22 de março, 58% da população da cidade não aprova sua gestão. Por outro ângulo, a mesma pesquisa mostrou que só 10% dos moradores classificam seu trabalho como bom ou ótimo e 30% o consideram regular. O restante (2%) não tem opinião. “O Rio de Janeiro vive a pior crise econômica da sua história. Passado o frisson da Copa do Mundo e da Olimpíada na gestão anterior, sobrou para a gente pagar a conta”, argumenta Crivella. “Encontramos a prefeitura quebrada. O tal legado olímpico era um verdadeiro largado olímpico, uma manada de elefantes brancos que só deixou dívidas”, completa.

Os números revelados pela pesquisa espelham a administração de um alcaide que descumpriu promessas de campanha, lançou propostas esdrúxulas, bateu o pé em umas e recuou em outras, mostrou falhas em setores primordiais, acumula obras paradas e, em momentos cruciais, como o Carnaval, está viajando. Como acontecia nas primeiras semanas de governo, continuam a brotar perguntas como “Cadê o prefeito?” ou “Ele mora na cidade?”. A oposição não perdoa. “O Crivella é o fantasma do próprio governo dele. Quando aparece, assusta”, critica o vereador Paulo Pinheiro, do PSOL. “Ele se comporta como um líder religioso, esquece que é gestor de uma cidade cuja história sempre foi marcada pela vanguarda, por diversidade e efervescência cultural. O Rio se apequena, viramos Sucupira!”, compara Carlos Tufvesson, que comandou a Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual na gestão anterior da prefeitura. Em dezoito meses de mandato, de fato, pouco se viu de concreto nas realizações de Crivella. Em compensação, não faltaram críticas. É inquestionável também que o prefeito se comunica mal e, quando o faz, age de forma atabalhoada, inspirando confusão. Por exemplo: ele já planejou construir um muro de proteção contra tiroteios nos fundos do Palácio da Cidade, em Botafogo, depois negou e acabou desmentido por um subsecretário que revelou que a obra tinha sido até orçada. Há poucos dias, foi publicado um edital prevendo que o município gastaria 574 000 reais, por dois anos, com motos para a sua escolta. Inicialmente ele se referiu à informação como fake news. Mais tarde reconheceu a sua veracidade e, depois, cancelou tudo.

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(Arte/Veja Rio)

Não menos controversa foi a autorização, seguida de veto, para a encenação da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu no palco do Teatro Fernando Torres, da rede municipal. O papel principal, do filho de Deus, coube à atriz transexual Renata Carvalho. Movido por certa ira santa, Crivella alegou que “nenhum espetáculo vai ofender a religião das pessoas”. Tem mais. Na mesma semana, os cidadãos souberam que o ocupado mandatário iria soltar a voz num show, previsto para o último dia 14, no Centro de Convenções SulAmérica. O evento estrelado pelo cantor-prefeito, que tem disco de platina e gravou mais de 100 músicas gospel, visava a arrecadar fundos para a construção do Memorial do Holocausto, no Morro do Pasmado. Em meio a polêmicas e compromissos artísticos que chamam mais atenção do que a agenda oficial, surge no Rio, ainda de forma incipiente, um movimento pelo seu impeachment, batizado de #foracrivella. “A sociedade quer é que o prefeito apareça, mostre a que veio. Por enquanto o que se vê é a total falta de gestão”, avalia a vereadora Teresa Bergher (PSDB). O deputado estadual Átila Nunes (MDB) é mais enfático. “O impeachment dele é uma questão de tempo”, afirma o parlamentar, que já levou o assunto à Ordem dos Advogados do Brasil.

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Não se pode apontar um único erro como a razão da impopularidade de Crivella. A coisa está mais para uma síndrome, uma sucessão de tropeços. Várias promessas de campanha ficaram pelo caminho — a injeção de recursos para a conclusão do metrô da Gávea foi uma delas. Outra, o término do BRT Transbrasil até o fim de 2017. Um levantamento da Câmara dos Vereadores, revelado neste mês, mostrou que há 300 obras inacabadas. O compromisso de que não aumentaria tributos também caiu por terra com o reajuste de até 200% do IPTU. Além de lembrar da crise no país, Crivella atribui suas dificuldades aos problemas de caixa na prefeitura: “Foram mais de 6 bilhões de reais contraídos em empréstimos para os Jogos Olímpicos. Só no ano passado, essa brincadeira custou 1,2 bilhão de reais, pagos a título de juros, encargos e amortizações. Isso sem contar o montante de 1,5 bilhão de reais em empenhos cancelados no último mês do governo do Eduardo, ação pela qual o ex-prefeito responde na Justiça”. Seu ex-secretário de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação, Índio da Costa, pré-candidato ao governo estadual, sai em sua defesa. “É difícil exercer essa função depois de uma série de irresponsabilidades deixadas pelo antecessor. A palavra que o define é austeridade”, elogia Índio, que conta com seu aval na campanha. “Tenho a cabeça erguida, e no meu governo não há cumplicidade com corrupção. Vamos encarar esse desafio e superar a crise”, afirma o prefeito.

Entre as medidas de economia já adotadas estão o corte de metade dos gastos com cargos comissionados e a redução do número de secretarias, de 35 para onze. Por outro lado, nenhum outro ocupante do mesmo cargo no Rio trocou tanto de colaboradores em um ano e meio de governo. Pastas estratégicas, como Transportes e Casa Civil, já estão sob a terceira administração. No último caso, um processo por nepotismo minou os planos do prefeito de fazer do primeiro-filho, Marcelo Hodge Crivella, seu braço-direito. O cargo que seria de Marcelinho agora está com o vereador licenciado Paulo Messina. Articulado, ele responde nos bastidores pela alcunha de primeiro-ministro e é apontado como a pessoa que toca a prefeitura de fato. “O Crivella é a rainha da Inglaterra. A diferença é que a verdadeira talvez mande mais do que ele no Rio”, ironiza o advogado Victor Travancas, autor de sessenta ações contra o antigo aliado. Em momento de breve reconciliação, o desafeto chegou a assumir um cargo na Rio Eventos, em abril, mas já pediu o boné.

Embora tenha afirmado que não faria uma gestão pautada pela religião, Crivella não consegue dissociar o bispo do prefeito, o púlpito da cadeira de administrador. Ele não esconde de ninguém que enxerga o mandato como uma missão divina. É comum, ao enfrentar um problema na prefeitura, seja diante do secretariado, seja de um visitante, lançar mão de passagens bíblicas ou frases como: “Minha irmã, meu irmão, Deus tudo proverá, tem que acreditar”. Antes de almoços, tanto no Palácio da Cidade quanto na sede administrativa, popularmente conhecida como Piranhão, o sobrinho do bispo Edir Macedo costuma fechar os olhos na presença do interlocutor e orar em clima de culto. No alto escalão do município, vários cargos foram dados a membros da igreja. Nessa lista figuram o pastor evangélico Rubens Teixeira, que passou por duas secretarias, além da Comlurb, de onde foi apeado pela Justiça, e o bispo licenciado Isaías Zavarise, ex-diretor de marketing da Record e atual assessor especial na prefeitura.

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Posicionamentos do alcaide deixam ainda mais claro que a sua crença se sobrepõe aos interesses da população. Sem fazer uma consulta pública, ele se opôs com veemência, por exemplo, à montagem da exposição Queermuseu, no Museu de Arte do Rio (MAR), endossando o argumento de que as obras promoviam zoofilia, pedofilia e desrespeitavam símbolos religiosos. Após ter sido levantado mais de 1 milhão de reais em financiamento coletivo, a mostra será montada no Parque Lage. No Carnaval, é claro, conflitos entre o sagrado e o profano complicaram ainda mais a liturgia do cargo. Crivella foi o primeiro prefeito em início de gestão, desde a inauguração do Sambódromo, em 1984, a não ir aos desfiles. Neste ano, chegou a participar da cerimônia de entrega da chave da cidade ao Rei Momo, sem, porém, tocá-la nem pisar na Sapucaí nos dias de festa. “Ele prefere amargar críticas da opinião pública a decepcionar o eleitorado da igreja”, diz uma pessoa ligada à administração do município.

Com problemas amontoando-se na cidade, Crivella passou 36 dias em viagens oficiais no exterior durante o primeiro ano de mandato. Foi da França à Rússia, passando por Holanda, Emirados Árabes e China. Como o prefeito também é filho de Deus, houve passeios particulares. Às vésperas da publicação no Diário Oficial de uma mudança no calendário de pagamento dos servidores, em dezembro, ele embarcou para a terra do Mickey, na Flórida, onde passaria o Natal. Flagrado por brasileiros em um supermercado local, inspirou memes como a frase “cuidando de pessoas em Orlando”, em alusão ao seu slogan de campanha. Em fevereiro passado, nova ausência, justamente no Carnaval em que foi retratado como judas pela Mangueira, atiçou críticas ferozes. Enquanto ele fazia um tour pela Europa e postava nas redes sociais vídeos em que reclamava do rigor do inverno por lá, o Rio padecia sob uma chuvarada que deixou quatro mortos e 2 000 desabrigados. Justificada como uma busca por soluções tecnológicas em segurança, a viagem, que consumiu 150 571 reais, teve seu caráter oficial desmentido por instituições visitadas. Para piorar as coisas, descobriu-se que um drone selecionado para monitorar o Rio pode ser facilmente adquirido em lojas do Centro. “Sair da cidade em momentos importantes é um erro crasso. Como essa, suas viagens até agora não surtiram efeito”, avalia o vereador Paulo Pinheiro. Crivella rebate. “Trabalho catorze horas por dia para reverter esse quadro de crise. E para isso é preciso buscar investimentos fora do Brasil, uma vez que quase todas as empreiteiras com poder de investimento por aqui estão envolvidas na Lava-Jato”, diz.

Aportes financeiros, desde que dentro da lei, são bem-vindos, não importa a sua origem. Enquanto o dinheiro não chega, no entanto, é importante cuidar direito do orçamento doméstico. O setor de saúde, prioridade na disputa do cargo, deveria receber 1 bilhão de reais a mais em quatro anos de governo. Deu-se, por enquanto, o oposto: esse mesmo valor foi cortado do orçamento da área desde 2017. Enquanto a desordem urbana toma conta das ruas e as finanças patinam, recursos são aplicados em segmentos controversos. Só em publicidade, propaganda e comunicação social foram gastos 53,5 milhões de reais. Com dívidas com fornecedores da área médica e até prestadores de serviço do último Réveillon, o prefeito não hesitou em despejar 1,2 milhão de reais na pintura de prédios na Rocinha para melhorar a imagem das fachadas, “feinha”, como declarou em entrevista. “Desde 2002, ele vem se preparando para ganhar a eleição, mas não para governar”, critica o deputado federal Pedro Paulo, derrotado no pleito de 2016. Movimentações recentes corroboram a impressão de que a campanha continua, mas a administração ainda derrapa. Uma delas foi a contratação do marqueteiro Daniel Braga, que cuida da presença do ex-prefeito de São Paulo João Doria na internet. Parece pouco. Os problemas — está na cara, está nas ruas — são bem mais concretos do que virtuais. ß

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