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Sim, a maconha medicinal já é uma realidade no Rio

A ciência mostra que substâncias extraídas da planta podem ajudar a aliviar vários males, algo que os cariocas estão descobrindo com o avanço da legislação

Por Fernanda Thedim Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 jun 2021, 11h51 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00
Abre Maconha
(Ira Evva/freepik/Divulgação)

Do alto da colina em Paty do Alferes, cidadezinha no interior do estado, descortina-se uma plantação pouco usual no Brasil. O terreno verde está tomado por 1 000 árvores de maconha que crescem sob a luz do sol na fazenda da Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Ali se produz a matéria-prima para o óleo medicinal distribuído a pacientes com doenças crônicas e graves.

Crianças com crises convulsivas diárias, adultos em estado de depressão severa, idosos que lutam contra os efeitos degenerativos do Parkinson. O cenário, a pouco mais de 120 quilômetros do Rio, traz à memória as estufas verdes espalhadas livremente pelos Estados Unidos, Canadá, Israel e mais quarenta países onde a legislação permite o uso terapêutico de substâncias encontradas na planta — debate que está caminhando também nestas bandas do globo, embora ainda enfrente resistência.

“Engraçado. Maconha pode, cloroquina não”, disparou o presidente Bolsonaro, da turma contra, ao comentar o Projeto de Lei 399/2015. Com o objetivo de regulamentar o cultivo da Cannabis sativa para fins medicinais, a proposta, voltada para empresas e organizações, acaba de ser aprovada na comissão especial da Câmara dos Deputados e espera-se que siga para o Senado.

Nos últimos anos, diversos estudos mostraram que extratos como o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC), que vêm da Cannabis, produzem resultados consistentes no tratamento de autismo, epilepsia, esclerose múltipla, dores crônicas, além do Parkinson.

Ainda há evidências promissoras contra Alzheimer, fibromialgia, depressão, transtorno de ansiedade e síndromes genéticas (veja como as substâncias agem no quadro mais abaixo). “As pesquisas avançam em toda a parte, principalmente onde não há restrições políticas e legais. Aqui, o desconhecimento e a desqualificação de estudos sobre o tema são desafios tão grandes quanto a falta de recursos e infraestrutura”, alerta o neurocientista Stevens Rehen.

Nos laboratórios do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, em Botafogo, e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o cientista se debruça sobre uma pesquisa inédita no mundo: usa células-tronco reprogramadas e “minicérebros humanos” (estruturas criadas em laboratório) para investigar os efeitos dos canabinoides.

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Laboratório do Idor, em Botafogo: pesquisa com extratos canábicos em andamento -
Laboratório do Idor, em Botafogo: pesquisa com extratos canábicos em andamento – (IDOR/Divulgação)

As descobertas no campo da ciência vêm ajudando a fazer ruir, aos poucos, o paredão do preconceito. O pontapé no Brasil deu-se em 2015, quando a Anvisa retirou o canabidiol do rol das substâncias proibidas e passou a permitir a importação do óleo mediante prescrição médica (leia sobre a evolução da legislação brasileira ao fim da reportagem). Mas os preços elevados e os entraves burocráticos são barreiras intransponíveis para muita gente — e alguns buscam na Justiça o direito legal ao plantio.

Em 2016, o primeiro habeas-corpus concedendo o cultivo para uso medicinal da erva foi dado à advogada carioca Margarete Brito, que assegurou assim a produção na varanda de seu apartamento na Urca. Mãe de Sofia, diagnosticada com CDKL5, uma síndrome genética rara que pode causar oitenta crises convulsivas por semana e problemas de desenvolvimento, ela encontrou no óleo de canabidiol esperança para aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida da menina.

“Não se trata de um remédio milagroso, mas amenizou a situação de forma importante. As crises ainda acontecem, só que com muito menos frequência”, relata a fundadora da Apepi, responsável por colocar de pé o projeto da primeira fazenda de maconha do Rio, na bucólica Paty do Alferes.

Margarete Brito e a filha Sofia (abaixo): do diagnóstico à luta -
Margarete Brito (acima) e com a filha Sofia (abaixo): do diagnóstico à luta (Raphael Erichsen/Divulgação)

A sede campestre da associação começou a ganhar vida em setembro do ano passado, após visitas a quase uma dezena de propriedades rurais no interior do estado. “Na hora em que falávamos o que seria plantado, a resposta era sempre não, mas nosso sonho tinha de caber em algum lugar”, lembra o coordenador Manoel Caetano.

E coube: o projeto da turma da Apepi ocupa hoje um terreno de 600 000 metros quadrados, vigiado por câmeras de segurança, onde agrônomos e biólogos cuidam de todas as etapas do cultivo — da produção do clone (que dá origem a mudas) até a extração da flor (onde concentram-se as substâncias fitoterápicas).

Seguindo as boas práticas do manejo orgânico, sem agrotóxicos e demais substâncias químicas, as árvores são divididas em diferentes platôs, de acordo com a fase de produção, e ganham pulseirinhas coloridas, iguais àquelas usadas na entrada de áreas VIPs de festas — as cores indicam os tipos de cepa, ou seja, suas características genéticas. “Algumas possuem maior concentração de CBD, outras de THC. Isso vai determinar a composição da fórmula e a mais recomendada para cada tratamento”, explica o agrônomo Diogo Fonseca Mantovanelli.

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arte maconha

Atualmente, seis variedades do óleo de CBD, vendido a preço de custo por 150 reais, são processadas no laboratório onde ficava a antiga cachaçaria da propriedade — alvo recente, aliás, de um mandado de busca e apreensão por acusação de crime de tráfico ilícito e uso indevido de drogas.

Em uma operação no fim de abril, sete carros de polícia, vinte oficiais e cães farejadores invadiram a área e apreenderam os celulares dos funcionários. “Nosso grande receio era que destruíssem as plantas. Teríamos mais de 600 pacientes sem remédio. Felizmente, conseguimos agir rápido e nada aconteceu”, conta Margarete, que acionou o Tribunal Regional Federal para obter uma autorização para a fazenda.

A primeira fazenda de maconha no Rio: a matéria-prima é usada na produção do óleo medicinal (abaixo) -
A primeira fazenda de maconha no Rio (acima): a matéria-prima é usada na produção do óleo medicinal (Léo Lemos/Divulgação)

Em 2020, a Apepi chegou a receber uma liminar (proferida pelo juiz que analisa o caso), permitindo seu funcionamento, mas foi revogada meses depois, após questionamentos da Anvisa. “Fizeram ressalvas em relação à produção de remédios, mas não à plantação”, esclarece o advogado Ladislau Porto.

O martelo final deverá ser batido em um mês — montanha-russa jurídica que outros também experimentam. “A meta é chegar a 10 000 árvores nos próximos anos, nos tornar uma referência em farmácia verde e poder ajudar mais pessoas”, acrescenta a advogada, que se tornou a principal ativista na luta pela legalização da maconha com fins medicinais no país.

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Parte dessa história será contada no documentário O Mundo de Sofia, previsto para ser exibido no GNT em 2022. Com direção de Raphael Erichsen, o filme é uma espécie de continuação de Ilegal, de 2014, que registrou o início da batalha dos pacientes da Cannabis. “Nessa época, o debate era outro: a gente ainda tinha de explicar do que se tratava a maconha medicinal. A discussão evoluiu, tanto é que a pauta agora é o cultivo, a produção e a regulação desse mercado”, diz Erichsen.

As conquistas da sociedade civil, impulsionadas por avanços científicos e brechas na legislação, vêm abrindo trilhas para o uso terapêutico da planta no Rio, que tem adeptos declarados, como as atrizes Ingrid Guimarães, Laura Neiva e Claudia Rodrigues. Diagnosticada com esclerose múltipla há vinte anos, Claudia, 50 anos, conheceu o óleo de CBD através da apresentadora Xuxa, que comprava para a mãe, falecida em 2018 após uma longa batalha contra o Parkinson. “Ele relaxa minha musculatura, diminui o tremor das mãos e ajuda a centralizar meu olho, que ficou estrábico por causa da doença”, contou a humorista.

Para fins medicinais: UFRRJ estuda como adaptar o manejo da planta ao nosso solo -
Para fins medicinais: UFRRJ estuda como adaptar o manejo da planta ao nosso solo (iStock/Getty Images)

No palco das celebridades internacionais, a lista de usuários é bem maior — vai de Morgan Freeman, que emprega a substância contra a fibromialgia, a Jennifer Aniston, que mira transtornos de ansiedade —, graças à facilidade de acesso e à variedade de produtos e medicamentos, encontrados em forma de creme, cosméticos e até alimentos. “Produzir mais conhecimento sobre os benefícios desses tratamentos é consenso em vários países do mundo”, frisa o deputado Carlos Minc, autor da lei pioneira sancionada em 2020, no estado do Rio, para fomentar as pesquisas em associações, institutos e universidades, que apostam na flexibilização da legislação, cedo ou tarde.

Um vultoso estudo está em curso na UFRRJ em parceria com a Canabiologia, Pesquisa e Serviços (Canapse), associação sem fins lucrativos formada por cientistas. O grupo não revela a localização exata, mas mantém na Região dos Lagos uma sede onde cultiva os pés que abastecem os laboratórios. Os pesquisadores trabalham ali para adaptar o manejo da planta ao nosso solo. “O país aproveita só o pior da maconha: tiro, encarceramento e mortes. Sempre tivemos de nos acostumar com isso, mas chegou a hora de mudarmos a equação”, pontua Ricardo Nemer, secretário executivo da Canapse.

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Pietro Vanni, da Gravital: ansiedade é a principal causa dos atendimentos -
Pietro Vanni, da clínica canábica Gravital: ansiedade como principal causa dos atendimentos após início da pandemia (Léo Lemos/Divulgação)

Se já se tratava de um mercado em expansão, a pandemia, sempre ela, jogou ainda mais luz nos medicamentos derivados da erva, em razão do agravamento dos transtornos mentais. De acordo com uma pesquisa da UERJ, desde que o novo coronavírus chegou houve aumento de 90% nos casos de depressão e transtornos de ansiedade entre os cariocas. Isso se refletiu no crescimento da procura por tratamentos com a Cannabis.

Hoje, a ansiedade é a principal causa dos atendimentos (42%) nos consultórios da clínica especializada Gravital, à frente de doenças como fibromialgia (8%), Parkinson (8%), Alzheimer (8%), autismo (4%) e dor crônica (4%). “O potencial de tratamentos é enorme, inclusive para idosos. As substâncias podem atacar vários sintomas decorrentes do envelhecimento”, afirma o psiquiatra Pietro Vanni, diretor da Gravital. “Certamente os estudos da Cannabis se converterão em uma das áreas da medicina com maior potencial de se desenvolver nos próximos anos”, projeta.

Óleos importados com a permissão da Anvisa: 200% de aumento na procura em três meses -
Óleos importados com a permissão da Anvisa: 200% de aumento na procura em três meses (Rodrigo Potsch/Divulgação)

Atualmente com quatro unidades no Brasil e mais quatro a serem abertas ainda em 2021, a Gravital inaugurou sua primeira sede no fim de 2019, em Botafogo, na mesma época em que a Anvisa autorizava a venda em farmácias de produtos à base de Cannabis mediante receituário controlado, como já ocorre com antidepressivos, calmantes e outras substâncias que atuam no sistema nervoso central.

A forma mais popular de obtenção desses medicamentos, no entanto, ainda é através de associações de pacientes — além da Apepi, há a Abrario e a AbraCannabis, todas no Rio — ou de importação. No Brasil, por ora, apenas um remédio com CBD, feito de matéria-prima trazida de fora, é encontrado em drogarias (custa mais de 2 000 reais), além de dois fitofármacos.

Mas a perspectiva é de que eles ganhem concorrentes muito em breve — e isso é bom: a Anvisa analisa novos pedidos de comercialização e, em maio, deu aval à Fiocruz para a produção de uma fórmula elaborada com base na transferência de tecnologia do laboratório Prati-Donaduzzi, do Paraná. “Trata-se de uma medida administrativa para que o instituto esteja apto, do ponto de vista regulatório, a fornecer futuramente o produto pelo SUS”, informou a Fiocruz por nota.

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Plantação no Canadá: o país é líder nas pesquisas e produção -
Exemplo de plantação no Canadá: o país é líder nas pesquisas e produção da erva para uso medicinal (./Divulgação)

Com a promessa de movimentar quase 5 bilhões de reais no Brasil nos próximos três anos, a expectativa de crescimento do segmento é tão otimista que ganhou o apelido de “corrida verde”, uma alusão à “corrida do ouro”, o motor da economia no Oeste americano no século XIX. “Nosso faturamento no primeiro trimestre de 2021, quando comparado ao último trimestre de 2020, subiu 200%”, calcula Eduardo Rydz, da Health Meds, com sede na Barra da Tijuca.

A empresa, aberta em 2019, auxilia na autorização legal para a importação e fornece quatro tipos de óleo produzidos em um laboratório próprio na Flórida, nos Estados Unidos — cada vidrinho, de 60 mililitros, sai a 320 dólares, cerca de 2 000 reais. Ainda que o valor seja alto, o número de pacientes que entra com pedido na Anvisa para a compra no exterior subiu 138% em 2020. No estado do Rio, até abril deste ano, 6 042 pessoas tinham a permissão da agência e mais de 12 000 medicamentos haviam sido trazidos legalmente de outros países.

Cannabis Thinking: o seminário acontece em outubro no Rio -
Cannabis Thinking: a segunda edição do seminário acontece em outubro no Rio (Rafael Kibaiasse/Divulgação)

Um dos grandes desafios nessa seara é combater a falta de informação que alimenta o preconceito. “Diria que se trata do principal entrave para o crescimento da indústria no Brasil”, avalia Alex Lucena, sócio e braço carioca da The Green Hub. Trata-se de uma plataforma de tecnologia e inovação que promove a aceleração de startups canábicas e vai realizar em outubro a segunda edição do seminário Cannabis Thinking no Rio — o ex-­presidente Fernando Henrique Cardoso foi um dos palestrantes da última conferência.

Entre as dezenove apostas da organização está a The Dogons, surgida em Niterói a partir da experiência dos pais da pequena Maria Flor, de 4 anos, diagnosticada com autismo. “Era muito difícil prender sua atenção e isso compromete todo o aprendizado. Quando começamos a usar o óleo, ela virou outra criança”, conta a mãe, Taysa Daudt. Aluna do curso de especialização em Cannabis medicinal da Unifesp, a gastrônoma iniciou as pesquisas para um probiótico solúvel em água com infusão de CBD. O produto será desenvolvido com o auxílio da farmacêutica alemã Merck em um centro tecnológico no Uruguai — este é um dos países que, além de acolher a maconha medicinal, também a legalizou para fins recreativos.

Taysa Daudt: projeto de probiótico canábico selecionado por aceleradora -
Taysa Daudt, mãe de Maria Flor: projeto de probiótico canábico selecionado pela aceleradora The Green Hub (Léo Lemos/Divulgação)

Nos anos 1990, foi a Colômbia a pioneira em estabelecer regras flexíveis e abrangentes na adoção da erva para atenuar sintomas de um leque de doenças. Com uma das legislações mais avançadas do mundo, o Canadá aprovou seu uso medicinal há exatas duas décadas, posicionando-se na linha de frente da produção. Entre as dez maiores companhias do mundo no ramo, seis estão baseadas lá, e cerca de 10% da população (3,7 milhões de pessoas) fazem uso frequente de produtos canábicos.

Alçada a uma das grandes opções terapêuticas do século, a espécie original da região aos pés do Himalaia já era usada há milhares de anos no tratamento de inúmeros males por toda a Ásia. No Brasil, estima-se que tenha chegado junto com os escravos no século XVI — o termo “maconha” é original do idioma quimbundo, de Angola.

Era muito consumida em rituais de candomblé, até que o presidente Getúlio Vargas, em troca da legalização da religião, teria negociado sua retirada dos terreiros. A proibição oficial data de 1830, quando a Câmara Municipal do Rio tornou ilegal sua venda e uso. Mas o mundo girou, felizmente. Se a ciência já provou que a terra não é quadrada, que a cloroquina não previne a Covid-19, ela demonstra agora que, se empregada da forma correta na seara medicinal, a maconha pode, sim, fazer bem à saúde de muita gente.

Colaboraram Renata Magalhães e Saulo Guimarães

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