Kaza 123: ponto de resistência negra e de ‘cabeças pensantes’ da cidade
Exaltando a negritude através da literatura, da gastronomia e da moda, estabelecimento em Vila Isabel firma-se como espaço de luta contra o racismo
Quando conheceu a casinha mais colorida da Rua Visconde de Abaeté, em Vila Isabel, a atriz e mestre em dança afro Valéria Monã, 53 anos, sentiu-se perfeitamente à vontade, como nem sempre aconteceu em sua vida. “Na primeira vez que estive lá, cheguei a chorar. Não fui encarada como suspeita, não tinha ninguém me olhando e julgando por causa da minha cor de pele”, conta. O local tão acolhedor a que ela se refere é a Kaza 123, misto de bar, restaurante, livraria e espaço de moda, inaugurado no fim de agosto no bairro da Zona Norte.
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Criado e administrado por uma equipe 100% preta, o espaço foi idealizado com o intuito de exaltar a cultura negra e está ganhando fama como ponto de resistência (e muitos encontros) no Rio. “É o endereço que hoje as cabeças negras pensantes da cidade estão frequentando”, diz o roteirista e consultor William Vorhees.
À frente da empreitada está o escritor, sociólogo e dramaturgo Rodrigo França, que se uniu à designer e chef de cozinha Maria Julia Ferreira e à atriz e ex-atleta do vôlei Lica Oliveira. O trio teve a ideia de se instalar em um ponto fixo depois da bem-sucedida experiência com um food truck especializado em angu, comida preparada e vendida por mulheres negras no período pós abolição – só por curiosidade, o quadro Angu da Quitandeira, pintado por Debret em 1827, mostra uma cena em que elas servem o creme feito com o fubá de milho perto do porto do Rio. “É uma herança africana fortíssima e, para nós, a comida tem uma simbologia poderosa”, explica a chef Maju, que transformou o prato, que vem com molhos diversos, no carro-chefe da casa de Vila Isabel. Para William Reis, coordenador do AfroReggae e frequentador da Kaza, a receita vai muito além do simples ato de comer: “Ela promove uma aula de história num lugar de muita troca de afeto”.
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A cor da pele, evidentemente, não restringe a entrada de ninguém, uma vez que o que se preza e pratica ali é diversidade na veia. “Imagina se não vamos querer brancos aqui. Iremos abrir a porta a todos, exatamente como gostaríamos que fizessem conosco”, frisa Rodrigo França. Já em relação aos funcionários, aí não tem papo: são todos negros.
Segundo o sócio, a ideia é corrigir uma distorção histórica. “Tivemos a preocupação de dar oportunidade de trabalho a quem não costuma ter. Por isso a equipe é totalmente preta e colocamos em prática a filosofia do black money”, acrescenta. O conceito, que prega que o dinheiro gire dentro da comunidade negra, vem ganhando força no país, onde esse numeroso naco da população movimenta 1,9 trilhão de reais por ano. “Eu poderia pagar mais barato pela cerveja em outro canto, mas faço questão de consumir ali”, enfatiza o engenheiro Gilson Cunha.
Em sua última visita, Gilson estava em busca de livros para presentear Maria Antônia, filha do casal de amigos Taís Araujo e Lázaro Ramos. “Tem nos sites, mas prefiro vir comprar na Kaza. A gente tem de se fortalecer.
”A lista de best-sellers da livraria, instalada entre quadros de ícones negros como Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Angela Davis, Tim Maia, Malcolm X, Elza Soares e Marielle Franco, revela um dado interessante. Literatura infanto-juvenil é, de longe, o que mais vende na loja, cujo acervo é voltado para livros de autores negros ou que tratem da questão racial. “As crianças não se viam nas histórias que liam, não eram representadas. Isso mudou e faz sucesso entre quem sempre se viu excluído”, afirma Heloisa Marcondes, dona dessa parte do negócio.
O fenômeno local ecoa um movimento bem mais abrangente. Para dar um exemplo: O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França, um dos donos, não é apenas o mais vendido na Kaza 123, mas também no gigante on-line Amazon, onde ocupa o primeiro lugar no ranking de literatura e ficção para adolescentes.
Não foi por acaso que o novo ponto se instalou em Vila Isabel, região de destaque na cultura popular e do samba. “O bairro já nasceu com espírito libertário, a partir da iniciativa do empresário abolicionista João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond”, relata o professor e pesquisador Jonathan Raymundo.
Em 1871, o nobre comprou as terras da Imperatriz Dona Amélia, mulher de Dom Pedro I, e decidiu criar ali um bairro planejado – o primeiro do Rio -, no qual os nomes das ruas homenageavam outros abolicionistas notáveis, como Torres Homem e Souza Franco. O Boulevard 28 de Setembro, uma das principais vias desse pedaço do Rio, foi batizado assim em homenagem à data em que a Lei do Ventre Livre foi sancionada. “Nosso lugar só podia ser aqui”, conclui a chef Maju. É dela, aliás, o angu mais festejado da cidade.