Fuzis são cada vez mais usados em assaltos nas ruas
Apesar dos casos não entrarem em uma estatística específica, policiais relatam que os casos estão aumentando
Sábado, primeiras horas da manhã. Uma médica seguia em sua minivan pela Linha Vermelha em direção ao Hospital Clementino Fraga Filho, na Ilha do Fundão, para mais um plantão de fim de semana. Acostumada à rotina, ela se surpreendeu ao ser fechada por dois carros nas proximidades da entrada da UFRJ. Desorientada, pensou até em escapar, mas optou por não reagir. Dois homens armados com fuzis se aproximaram do carro, renderam a motorista e colocaram um capuz em sua cabeça. Com a médica como refém, foram em direção ao Complexo da Maré, onde a deixaram minutos depois. O episódio relatado a VEJA RIO pela vítima — ela pediu para não ser identificada por medo de represálias — é apenas mais um entre outros tantos que comprovam uma nova realidade nas ruas: tornou-se banal o uso de armas pesadas para assaltos tidos até então como corriqueiros. “Não temos estatísticas, pois não se especifica o tipo de arma ao reportar crimes, mas através das informações dadas pelos policiais estamos acompanhando uma mudança de comportamento na ação dos bandidos”, afirma o major Ivan Blaz, coordenador de comunicação social da Polícia Militar. As histórias, de fato, surgem dispersas em meio ao noticiário policial, como a ocorrência de dois arrastões no Túnel Marcello Alencar, na Zona Portuária, recentemente, assim como roubos em São Cristóvão, em Niterói e na Baixada Fluminense.
Uma das explicações aventadas para o fenômeno está na degradação do modelo das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas. A premissa básica do projeto foi exatamente estrangular o uso de armamento pesado pelos traficantes. Entretanto, com o colapso financeiro do estado e o afrouxamento da ação policial nas áreas que receberam unidades, as quadrilhas de traficantes voltaram a disputar território e a trazer armas pesadas para suas novas investidas. Uma série de carregamentos destinados aos traficantes já foi interceptada e as apreensões continuam com índices alarmantes (veja o quadro). No ano passado, foram coletados 344 fuzis no estado, enquanto em 2016, até a semana passada, a PM contabilizava 279. Diante do acirramento das disputas nos morros, as gangues têm se abastecido com modelos mais modernos, que custam em torno de 50 000 reais. “Há duas possibilidades. A primeira é que estão sobrando armas nas favelas e os traficantes as estão alugando a bandidos comuns. A outra é que se trata de uma estratégia deliberada para amedrontar a população e intimidar a polícia em um momento de fragilidade do estado”, opina Ubiratan Angelo, coordenador da ONG Viva Rio e ex-comandante-geral da PM.
A primeira apreensão de um fuzil nas mãos de traficantes aconteceu em 1986, na Mangueira, quando um FAL roubado do Exército foi recuperado. Na época, a PM utilizava revólveres 38 e espingardas de calibre 12 milímetros. Passados trinta anos, os números assombram. Desde 2007, o estado apreendeu mais de 84 000 armas — sendo 2 558 fuzis. Pesquisa do Viva Rio concluiu que 86% desse armamento foi fabricado no Brasil. “O problema não está apenas nas fronteiras. É preciso fiscalizar as fábricas daqui e a venda de armamentos em geral”, afirma o sociólogo Antonio Rangel, coordenador do estudo. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que, entre dezembro de 2015 e outubro de 2016, ocorreram 4 077 roubos e furtos de arsenais de empresas de segurança privada no país, 493 deles no Rio. “É preciso pensar em um controle de armas mais eficiente”, defende Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé, entidade dedicada a estudos sobre segurança e cidadania. De fato, sem iniciativas concretas para acabar com os paióis nas favelas, não há pacificação que resista.