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Blog da Thalita Rebouças
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Obra no andar de cima

O inferno começava pontualmente às oito da manhã. E se fazia presente da pior forma possível, com um martelete. Se você não está ligando o nome à pessoa, explico: martelete é a máquina responsável por aquele “trrrrrr” insuportável, capaz de acordar um urso hibernando, que reina em toda e qualquer obra de respeito. Entendo a […]

Por thalita
Atualizado em 25 fev 2017, 19h01 - Publicado em 2 ago 2013, 02h35

O inferno começava pontualmente às oito da manhã. E se fazia presente da pior forma possível, com um martelete. Se você não está ligando o nome à pessoa, explico: martelete é a máquina responsável por aquele “trrrrrr” insuportável, capaz de acordar um urso hibernando, que reina em toda e qualquer obra de respeito. Entendo a necessidade de fazer obras, entendo viver em condomínio, entendo democracia. Mas não entendo o uso do martelete por pouquíssimos minutos, devidamente seguidos de profundo silêncio. Por quê? Por que o martelete só é usado aos primeiros minutos da deliciosa manhã? Duas semanas de martelete depois, resolvi subir para argumentar.

Pedi para falar com o mestre de obras, o seu Jorge, senhor de cabelos brancos que me atendeu com a maior simpatia:

– Seu Jorge, eu trabalho até tarde…

– Fazendo o quê? Desculpe a curiosidade…

– Escrevendo.

– Escrevendo o quê?

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– Livros.

– Ah, tá. Mas além de escrever a senhora trabalha com o quê? Vive de quê?

Adoro essa pergunta.

– É o que estou dizendo, seu Jorge. Vivo de livros.

Prossegui com meu desabafo:

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– Agora o senhor imagina o que é para uma pessoa que trabalha até quatro da manhã acordar às oito com uma bateria de escola de samba em cima da cabeça?

– Tem samba aqui não, dona. É tudo trabalhador.

– Eu sei, seu Jorge. Samba é modo de dizer. Estou me referindo à barulheira que vocês fazem enquanto durmo. E a barulheira só dura uns 10 minutos! Vocês não poderiam inverter? Fazer tudo de barulhento na parte da tarde e só coisas silenciosas pela manhã?

– Olha só… Boa ideia! Pode deixar, dona. Amanhã mesmo começamos isso.

Saí de lá feliz da vida. O que não é o diálogo? Que força tem uma conversa sincera! Se todos os seres humanos resolvessem seus problemas dessa forma tão civilizada o paraíso seria aqui. Que alívio saber que no dia seguinte não haveria nenhuma “rave” incomodando o meu cérebro.

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No dia seguinte, pontualmente às oito da matina…

Trrrrrrrrrrrrrrr! Trrrrrrrrrrrr! Trrrrrrrrrrrrrrrr!

Subi de novo.

– Seu Jorge, querido! Lembra de mim?

– Lembro sim, a escritora!

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– Isso! E lembra o que a gente conversou ontem?

– Lembro, sim, senhora!

– Então por que a obra começou de novo com o martelete?

– Xi… Começou, foi? Veja a senhora, o povo não ouve a gente.

– Eu sei…

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– Josééé! Não pedi pra não ter martelete no começo da manhã? – gritou lá pra dentro. – Pronto, está resolvido. Amanhã a senhora não acorda mais.

Respirei satisfeita.

No dia seguinte, às oito em ponto…

– Não é possível! Eu vou lá de novo!

– Fazer o quê, amor? – perguntou Carlos, um olho aberto, outro fechado. – Não adianta!

– Tem que adiantar!

Vesti uma roupa e subi.

– Seu Jorge, lembra de mim, né? O que acontece, seu Jorge? O senhor não foi com a minha cara, seu Jorge?

– Eu fui, sim. Os meninos é que não foram. Disseram que se a senhora fosse piloto de avião, médico ou tivesse neném pequeno ou alguém doente em casa, tudo bem. Mas a senhora é só escritora, está aqui agorinha, podia estar escrevendo, não reclamando – explicou com uma sinceridade pasmante. – Não sou eu que estou dizendo, são eles lá dentro.

Quis voar na jugular de seu Jorge e na de todos lá dentro. Não voei.

O pior é que, quando o martelete saiu de cena, eu ainda conversava com o mestre de obras e pude constatar, com ele, que o silêncio era tanto que nem uma mosca ouviríamos.

– Cadê o barulho agora, seu Jorge? Onde estão os martelos, os marteletes, os serrotes? Vocês param de trabalhar depois de 10 minutos? É isso?

– Claro que não! A senhora quer ver?

Quis. Quis ver, pronta para encontrar operários dormindo, jogando baralho, mandando mensagens pelo celular… que nada! Estavam pintando, colando, passando fios… A obra estava a pleno vapor. Só não emitia som.

A reforma durou mais dois meses. Levei para lá livros, bloquinhos, marcadores de livros, broches da campanha Ler é Bacana… Fiz amizade com todos os operários, até levei (e tomei com eles!) café.

Não adiantou. O martelete insuportável continuou a martelar minha cabeça diariamente às oito da manhã.

Mas valeu a pena. O apartamento ficou lindo. Sei disso pois o novo proprietário, a par das minhas reclamações, após o fim da obra gentilmente me chamou para se desculpar pelo transtorno, oferecendo a mim e ao meu marido uma taça de espumante.

Não entendo berinjela, homens que carregam bolsas para as mulheres, gente que não recolhe cocô de cachorro da calçada, Fórmula 1, calça saruel, meião brancão de academia e obras que fazem barulho somente nos primeiros minutos da manhã. Não entendo mesmo. Obras barulhentas, à tarde. Obras silenciosas, de manhã. Sempre de manhã. Combinado?

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