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Por Rafael Mattoso, historiador
Curiosidades sobre o subúrbio carioca
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Vozes de protesto na imprensa suburbana

Mais de um século de denúncias por uma cidade mais igualitária

Por Rafael Mattoso Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 ago 2020, 02h03 - Publicado em 28 ago 2020, 18h45

Como morador que pesquisa os subúrbios cariocas, há cerca de duas décadas, confesso que por inúmeras vezes me deparo com matérias nos jornais que incomodam pelo teor depreciativo com o que retratam a cidade. Relembro agora do exemplo de uma publicação feita pelo jornal O Globo, em 13 abril de 2013, intitulada “Ao lado da linha férrea, caminhos de um subúrbio abandonado”. A matéria começava apresentando os subúrbios da seguinte forma: “Se o desenvolvimento da Zona Norte seguiu o caminho dos trilhos, hoje, às margens das linhas de trem e do metrô, algumas das ruas, avenidas e estradas mais degradadas e perigosas do Rio revelam um subúrbio abandonado”.

Infelizmente, afirmações como essas não são raras, e com frequência, seguem demostrando profundo desconhecimento da realidade suburbana, ignorância essa revestida de forte preconceito. O texto parece enquadrar de forma muito reducionista a visão de um subúrbio naturalmente depreciado, como se fosse apenas um lugar “degradado” e “perigoso”.

A atualidade desse debate se faz ainda mais pertinente em face do lançamento do livro “Jornalismo como Missão: militância e imprensa nos subúrbios cariocas, 1900-1920”, de autoria do historiador Leandro Clímaco Mendonça. Leandro vem estudando o papel da imprensa suburbana, os interesses de seus proprietários, redatores e jornalistas, além dos mecanismos particulares de atuação e comunicação com os leitores. Sua pesquisa de mestrado já havia gerado a publicação “Nas Margens: experiências de suburbanos com periodismo no Rio de janeiro, 1880-1920”, e agora sua tese de doutorado lhe rende mais um belo título para publicação.

Jornalismo como Missão (Mauad Editora/Divulgação)

O livro analisa um grupo de jornalistas que usava a imprensa local para defender os interesses suburbanos: uma verdadeira militância, que denunciava a falta de investimentos para além das regiões centrais e da nova Zona Sul.

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Desde a “Gazeta Suburbana”, primeiro tablóide do gênero, lançado em 1883, até o caderno “Zona Norte”, veiculado atualmente no jornal O Globo, ocorreram inúmeras transformações no modo de pensar os subúrbios. No entanto, muitas concepções depreciativas infelizmente ainda permanecem enraizadas.

Aproximadamente a partir da década de 1930, a pequena imprensa de bairro suburbana foi, gradativamente, perdendo seu lugar para os grandes veículos de comunicação – como o rádio e os jornais de maior envergadura.

 O Jornalismo Como Missão

Para explicar uma pouco mais sobre a obra “O Jornalismo como Missão”, convidamos o próprio Leandro Clímaco, amigo que tenho o prazer de trocar e aprender desde a nossa participação na publicação “Diálogos Suburbanos: identidades e lugares na construção da cidade”, de 2019. O texto que segue abaixo é de autoria de Mendonça e aborda um pouco do contexto histórico onde estas publicações foram feitas:

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O Suburbio, Méier, 1908 (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional/Arquivo pessoal)

“Serpenteando os bairros que compõem as Zonas Norte e Oeste da cidade, encontram-se os trilhos da antiga rede ferroviária. As locomotivas, que com seus apitos e fumaças passaram, desde a sua inauguração, em 1858, a compor o cenário daqueles arrabaldes, vieram a provocar profundos impactos no processo de crescimento urbano do Rio, assim como produziram novas sociabilidades derivadas dos usos daquele que passou a ser o meio de transporte por excelência no século XIX.

Dezenas de bairros foram se constituindo ao redor das suas estações, razão pela qual iniciou-se um processo que, por décadas, favoreceu a chegada, quase ininterrupta, de novas levas de migrantes e imigrantes, cujas diferenças socioprofissionais e de renda acabaram por produzir uma feição urbana desigual, e para muitos, injustamente precária. A instalação de portentosas unidades fabris, e a formação de bairros operários nas décadas finais do século XIX, foram mais um ingrediente a compor esse renovado espaço suburbano no alvorecer do novo século.

A percepção nutrida por uma fração desses moradores de que os bairros onde viviam eram preteridos pelos legisladores e prefeitos no tocante ao investimento público voltado para a qualificação urbana, os mobilizou a se armar de papel, tinta e tipografia com vistas a adentrar no seleto grupo daqueles que exerciam o jornalismo. Surgia assim a figura do ‘jornalista suburbano’, a quem caberia atuar na criação, direção, redação, colaboração e produção de títulos da imprensa periódica produzidos nos subúrbios, por suburbanos, e voltados prioritariamente para suburbanos. Tinha início a chamada imprensa suburbana, cujos títulos disputaram, entre 1880 e 1940, a atenção do leitor no mercado de notícias da cidade.

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Alguns dos mais destacados jornalistas que compuseram essa rede comunicativa suburbana – Pinto Machado, Xavier Pinheiro, Eduardo e Benjamin Magalhães, Mariano Garcia, José Roberto Vieira de Mello e Dias da Cruz – se sobressaíram na criação ou direção de títulos como O Subúrbio, Gazeta Suburbana, Echo Suburbano, O Suburbano, Revista Suburbana, bem como pela redação das seções para ou sobre os subúrbios criadas e mantidas por inúmeros títulos da imprensa diária, ingrediente que compôs uma verdadeira febre editorial que acometeu grande parte da imprensa empresarial do período, então ávida pela conquista de novos leitores.

A atuação jornalística destes homens foi crucial para a promoção de diversas iniciativas coletivas nos subúrbios. Tal militância esteve presente na organização de entidades classistas, mas também, e especialmente, naquelas criadas prioritariamente para lutar pelos “melhoramentos morais e materiais” das zonas suburbanas, cuja mobilização apenas fora possível graças à articulação promovida pelos periódicos, que a todo momento publicizavam seus feitos, os encontros com autoridades, e as avaliações sobre temas palpitantes da vida urbana.

As ações articuladas por esses intelectuais suburbanos foram alicerçadas pelo desejo de inscrever, na esfera pública, a “causa suburbana” enquanto pauta permanente da imprensa carioca, suburbana ou não, e eram alimentadas por uma premissa crescentemente compartilhada por seus membros: a de que caberia ao Estado republicano, em suas diferentes esferas político-administrativas, assumir novas responsabilidades no campo dos direitos sociais, notadamente os referentes à regulação das relações de trabalho, bem como aqueles relativos ao campo do direito à cidade, cuja campanha por eles organizada em torno dos “melhoramentos suburbanos” tão bem expressou.

Ou seja, na capital federal do início do século surgia, nas suas margens, um movimento mais organizado articulado por essa imprensa que visava, no limite, reformar o ordenamento jurídico expressado pela Constituição de 1891, cuja matriz excessivamente liberal não atribuía aos governos, federal e locais, maiores responsabilidades na regulação e produção de bens e serviços essenciais para a vida da maioria da população na urbe. Questões que, ainda hoje, poderiam nos ensinar e estimular na busca não apenas pela democratização dos meios de comunicação quanto no agenciamento e ampliação da participação popular no debate de questões de interesse público nas cidades”.

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Hoje claramente reconhecemos a força que as mobilizações articuladas pelas redes sociais podem tomar, compreendemos como é fundamentar agregar força e obter visibilidade para as nossas reivindicações. É interessante perceber como há mais de um século atrás os periódicos suburbanos já sinalizavam essa necessidade.

Neste sábado, dia 29 de agosto, às 16 h, estaremos ao vivo no canal Diálogos Suburbanos do Youtube aprofundando mais os debates sobre o tema.

Diálogos Suburbanos (Teresa Guilhon/Divulgação)

Rafael Mattoso historiador formado pela UFRJ, com mestrado em História Comparada e atualmente terminando o doutorado pesquisando a História da Cidade e do Urbanismo no Proub, Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura. É também organizador e autor do livro “Diálogos Suburbanos: identidades e lugares na construção da cidade”.

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O texto contou com a importante revisão e finalização da jornalista Sandra Crespo.

 

 

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