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Por Rafael Mattoso, historiador
Curiosidades sobre o subúrbio carioca
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Viva as festas juninas!

Que a força coletiva dos santos e orixás tragam esperança para seguirmos lutando

Por Rafael Mattoso Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 jul 2021, 10h54 - Publicado em 2 jul 2021, 18h15

Entramos em julho, o inverno chegou definitivamente e nem parece que já atravessamos a metade deste duro ano de 2021. Infelizmente, o número de mortos pela pandemia continua crescendo de forma alarmante, e a vacinação segue um ritmo muito mais lento do que desejávamos em nosso país.
É duro constatar que superamos a trágica marca de mais de 500 000 mortes pela Covid-19, no mesmo mês em que também tem início um tradicional período de festas populares.
Geralmente, no mês de junho, não faltam motivos para comemorações. O Dia Internacional do Orgulho LGBTQI+, o aniversário do Museu Nacional, a mais antiga instituição científica do país, e o nascimento dos saudosos João Cândido, ilustre morador de São João de Meriti, Vovó Maria Joana, da Serrinha, e Paulo da Portela, de Oswaldo Cruz, importantes nomes da história dos subúrbios e do Brasil. Não podemos esquecer que comemoramos juntamente com as Festas Juninas o Dia Nacional do Bumba Meu Boi, saudamos Exu e Xangô e celebramos os santos da Igreja Católica.
Procurar entender as origens e características particulares que envolvem os folguedos juninos é uma forma de lembrar, manter viva e cultuar as tradições de nossos antepassados, além de uma tentativa de renovar as esperanças por um futuro melhor e mais próspero.
É evidentemente que ainda devemos evitar aglomerações e aproveitar para refletir profundamente sobre a situação que estamos vivendo, respeitando o luto e a memória dos que nos deixaram. Porém, com a devida prudência, não devemos perder de vista a importância simbólica de celebrar a vida dos que seguem junto a nós. Reconhecer a resistência de todos que estão lutando ao nosso lado é algo igualmente fundamental.
Ouvindo apenas o início dessa bela letra: “Olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo” torna-se praticamente impossível não lembrar com saudade das festas juninas. Vem logo uma infinidade de recordações das comemorações que começam em junho, mas que muitas vezes estendem a alegria até o final do mês de agosto.
Na última madrugada fria do dia 24 de junho, realmente pareceu que “O céu estava assim em festa, pois era noite de São João”. Por consciência, no mesmo dia em que meu avô Antônio Severino, com 91 anos, voltava para sua terra natal na Paraíba, eu ouvia em casa a música do mestre Luiz Gonzaga em parceria com José Fernandes, originalmente gravada em 1951. Observando da janela a chegada de uma magnífica Lua Cheia, enquanto pensava em quando vamos poder participar novamente de uma quadrilha, pular fogueiras e dançar todos juntos.
Em meio a mais um São João atípico, a expectativa para voltar logo a aglomerar sem medo fica cada vez maior. Afinal, como é bom sentir o gosto, o cheiro e o arrepio na pele que só o aconchego e o verdadeiro calor humano e capaz de produzir.

Uma grande fogueira de São João pegando fogo entre várias bandeirinhas de Festa Junina
Fogueira de São João (Divulgação/Internet)

Para maior parte da minha família, essencialmente nordestina, a chegada de junho marca o início de uma tradição muito importante. É inegável que as festas juninas são celebradas em todo o país, contudo possuem uma íntima relação com a Região Nordeste. Provavelmente pelo fato histórico de ter sediado, em Salvador, a primeira e mais longeva capital do Brasil, entre 1549 e 1763, mas também por possuir a maior quantidade de estados da federação e uma população de cerca de 30% do total de brasileiros. Sabemos que foi no Nordeste que as festas surgiram e logo se espalhariam para todas as outras regiões.
Essa grande festividade agrega heranças culturais, musicais, gastronômicas e religiosas de quase todo o mundo, mas que foram misturadas, temperadas e ressignificadas pelo nosso povo. Uma comemoração que produz sociabilidades, afetos e identidades inerentes à própria história da brasilidade.
O hibridismo característico desta efeméride também é um traço singular da nossa suburbanidade. Talvez por isso as festas de rua nos subúrbios, especialmente nesta época do ano, sejam sempre tão concorridas.
Desde o início da nossa colonização, as festas juninas, originalmente chamadas de Joaninas, em referência ao dia de nascimento de São João Batista, trouxeram a influência europeia. No entanto, precisamos lembrar que esta celebração adquiriu um caráter sincrético, já que a data também coincide com os rituais ameríndios de colheita do milho, as reverências a Xangô, Orixá do fogo, cultuado no Candomblé e na Umbanda, assim como a devoção cristã. Só em junho temos Santo Antônio, no dia 13, São João, dia 24, São Pedro e São Paulo, no dia 29, e São Marçal, fechando o mês no dia 30.
A dinâmica cultural mais marcante das festividades juninas é a mistura, intercurso de experiências vindas de lugares distintos para compor aqui o belo mosaico das pândegas. Sabemos que da China vieram os fogos, que dão som e brilho à festa. Dos Países Baixos herdamos a tradição das brincadeiras de quermesse, tal como pular fogueiras. A influência colonial portuguesa produziu o “casamento na roça”, marca de um período em que não havia disponibilidade de padres para realizarem todas as celebrações. A gastronomia é caracterizada por alimentos indígenas, tradicionais comidas à base de milho, coco, mandioca, amendoim e batata-doce.

Mesa com comidas típicas de Comidas Santo António e São João
Comidas Santo António e São João (Valéria Silva/Arquivo pessoal)

Reunir-se em volta da fogueira para comer, dançar, contar histórias e agradecer a vida é uma tradição ancestral de vários povos. Identificadas desde as práticas pagãs realizadas pelos antigos habitantes das regiões ocupadas pelos romanos – como os povos celtas e germânicos, geralmente durante o solstício de verão europeu. Da mesma forma, as fogueiras de Xangô são muitas vezes realizadas pelos antigos sacerdotes descendentes dos griots trazidos da África. Assim como os rituais xamânicos de renovação e purificação espiritual são realizados para iluminar e aquecer o corpo e a alma.
Este ano, apesar do forte frio que inaugura o mês de julho, infelizmente não teremos ainda tantas fogueiras queimando. Como profetizou o mestre Luiz Gonzaga, a “saudade assim faz roer e amarga qui nem jiló”, mas a folia realmente precisa esperar um pouco mais. Só dessa forma ela poderá voltar a acontecer plenamente. Enquanto isso nós seguimos na fé de que logo estaremos “de volta pro seu aconchego”, como bem dizia Dominguinhos e Nando Cordel.

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Foto do Altar do Boi Brilhante de Lucas onde aparecem Santo Antônio, velas e flores
Altar do Bumba-Meu-Boi Brilho de Lucas (Karen Barros/Arquivo pessoal)

Para matar um pouco mais a saudade das festas populares deste período do ano, convidamos a professora Karen da Silva Barros, que também é guia de turismo e historiadora, com especialidade em História do Brasil pela UFF. Karen nos apresenta aqui uma parte de seus estudos sobre a festa do Bumba-Meu-Boi Brilho de Lucas, a partir do convite feito pelo grupo Boidaqui e da leitura da pesquisa da historiadora Aline Ferreira Paes.
“Quem ainda não sabia da existência de um Bumba-Boi Carioca, que segue preservando a memória e identidade maranhense a partir do bairro de Parada de Lucas, venha conhecer uma pouco dessa história.
A Associação Folclórica Bumba-meu-boi Brilho de Lucas foi criado em 1987, por migrantes maranhenses da cidade de Viana, que vieram para o Rio de Janeiro na década de 1970.
É importante saber que Boi-Bumbá é composto por inúmeros elementos musicais, teatrais, estéticos, devocionais e simbólicos da cultura maranhense e conhecido como uma das manifestações mais tradicionais da cultura popular. A celebração já é registrada, desde 2011, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como Patrimônio Cultural do Brasil.
Sobre a continuidade da festa e a permanência do grupo por tantos anos, tal fato se deve à sólida memória coletiva dos seus componentes, a qual é constituída basicamente pelas lembranças de sua infância na terra natal. Esta memória é constantemente atualizada e fortalecida, seja pelas relações familiares ou pelas eventuais viagens ao Maranhão, assim como em função dos encontros com outros maranhenses no Rio.
Logo que se mudaram para a Zona Norte Fluminense, primeiro chegaram os filhos mais velhos da família Rosa Castro e em seguida seus primos da família Silva Costa, partiram em busca de trabalho e melhores perspectivas de vida.
A família Rosa Castro se estabelece em Niterói, e os Silva Costa se estabelecem em Parada de Lucas, bairro popular dos subúrbios do Rio de Janeiro cortado pela estrada de ferro Leopoldina e pela Avenida Brasil.
Em pouco mais de 10 anos, as duas famílias estão em sua totalidade no Rio, integradas e com seus laços de parentesco ainda mais fortalecidos. Ao mesmo tempo, o Maranhão se tornava cada vez mais distante e saudoso.
A partir da década de 80, alguns encontros, completamente informais, começam a acontecer com o intuito de rememorar a terra natal, através de sua culinária e música típicas. As reuniões aconteciam aos fins de semana, em Parada de Lucas, no quintal da casa dos Silva Costa. As duas famílias se reuniam, para batucar improvisadamente em baldes e panelas, comer e ouvir músicas do Maranhão, incluindo toadas de bumba-boi. Ao ouvir discos de famosos grupos de boi, alguns integrantes relembravam e aprendiam toadas, ao mesmo tempo em que aprimoravam a maneira de tocar o batuque comum em Viana, o Sotaque de Baixada.
Com a regularidade dos encontros e fortalecimento dos laços de parentesco, entre 1982 a 1985, Almir Silva Costa, também um dos primeiros irmãos a chegar no Rio de Janeiro, criou uma miniatura de um boi, com 30 centímetros, chamado de boizinho, o embrião do que viria a surgir no futuro.
O primo Carlos Estevão, também foi protagonista no crescimento do boizinho para o boi adulto. Veio pro Rio em 1985, no ano seguinte seus primos já tinham o boizinho que eles brincavam no quintal e ele tratou de fez um boi grande.
Portanto, com o passar dos anos e fortalecimento dos encontros e da especial relação criada com essa memória, o grupo decide que o boi deve ir pra rua. Em 1987, o boizinho cresce definitivamente. Com a ajuda de outros maranhenses que já haviam se agregado ao grupo, ganha corpo maior e miolo, segue tomando a rua Joaquim Rodrigues, em frente ao número 169, no bairro de Parada de Lucas. Atualmente podemos afirmar que o boi já mora nesse local há anos e sempre é festeja no dia de São João, por maranhenses, cariocas e quem mais quiser chegar.”

Foto de um cartaz ando boas vinda para as pessoas que chegam na Festa de rua do Boi Brilhante de Lucas
Festa na rua do Bumba-Meu-Boi Brilho de Lucas (Karen Barros/Arquivo pessoal)

Esse texto foi escrito por Rafael Mattoso em parceria com Karen Barros, Historiadora, Guia de Turismo e membro fundadora do Instituto Histórico da Baixada de Irajá.

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rafaelmattoso@yahoo.com.br

prof.karensbarros@gmail.com

 

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