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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Sete semanas de quarentena: a ameaça do cansaço

Entramos na fase em que o que nos move não é mais a motivação por uma causa, mas sim resistir e sobreviver ao coronavírus

Por Elizabeth Carneiro
Atualizado em 30 abr 2020, 20h00 - Publicado em 30 abr 2020, 18h31

Em cerca de sete semanas de resguardo em casa, podemos dizer que já passamos por algumas fases neste período. Primeiro, a da negação ou da dúvida. Tudo parecia muito inacreditável. Em seguida, entendido o tamanho do problema, passamos para o engajamento com motivação: salvar vidas, preservar os nossos, ajudar os desfavorecidos e exercer a empatia.

Agora, entramos na terceira fase: o início do cansaço, uma sensação desagradável de “já deu”, um desconforto com a restrição de ficar isolado com todos os preços a serem pagos diariamente: solidão, medo, perda de dinheiro, infindáveis serviços domésticos. O conceito de surreal adquiriu novo significado. Começamos a participar de enterros online, a abrir covas em cemitérios para centenas de corpos e a evitar hospitais, percebidos não mais como foco de cura, mas sim de doença.

O que move esta terceira etapa não é mais a motivação por uma causa, que de certa forma nos inspirava, mas sim algo muito mais primitivo e instintivo: resistir e sobreviver à doença. Uma resignação necessária diante do caos que nos oprime pela sensação de falta de liberdade, quando as forças começam a desaparecer e cedem terreno a quadros de paranoia e pânico, precipitação de surtos psicóticos, piora de quadros prévios de depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo e outras doenças mentais pré-existentes.

Nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais vemos uma classe média que cresceu acostumada a ter serviços domésticos, diferentemente de europeus e americanos. São pessoas que estão há sete semanas lavando, passando, cozinhando, faxinando, em jornadas duplas ou triplas, e ao mesmo tempo estudando com os filhos, dando conta da família e das funções do trabalho em home office. O que pode parecer fútil para alguns, é a realidade de tantos outros. Há que se respeitar. Por outro lado, muita gente descobriu uma enorme capacidade adaptativa perante uma mudança de função produtiva muito abrupta para os que interromperam seus trabalhos formais. O que estamos todos tentando descobrir é como evoluir do otimismo para a postura de resistência, sem se deixar abater pela exaustão.

Nesta terceira fase do isolamento social, a ausência de contato físico tem impactado na saúde mental das pessoas. Recente pesquisa informal feita na internet perguntou o que os brasileiros estão sentindo mais falta na quarentena. A resposta: abraçar outras pessoas.

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Entre os que estão levando a quarentena devidamente a sério, a sensação de cansaço que marca esta etapa do isolamento é agravada pela falta de uma perspectiva de cura ou de prazo para tudo isso chegar ao fim, ampliando a angústia. É como correr uma maratona sem saber quantos quilômetros serão enfrentados. Outro fator de tensão atinge as pessoas contaminadas com sintomas leves. O medo de o quadro se agravar ou de não conseguir atendimento ou vaga nos hospitais eleva muito o nível de estresse. Num tempo em que qualquer espirro alérgico é visto como ameaça pelo entorno, a sensação de medo é generalizada: quem não teve a doença, tem medo de ter; quem está hospitalizado, tem medo de morrer; e quem já teve a Covid tem medo da reincidência. Estamos todos inseguros.

Tamanha insegurança vai de encontro ao modus operandi de uma sociedade ancorada na construção de um futuro imaginário em termos de segurança, seja financeira, emocional, profissional ou relacional. A má notícia é que não há nenhum indício de tal segurança disponível no momento. Descobrimos que não existe nada absoluto ou garantido. Como se não bastasse a pandemia, a instabilidade política no Brasil, independente de ideologias políticas, é um agravante. Talvez por isso, pacientes que no inicio da quarentena não quiseram fazer tratamento de psicoterapia online, agora pedem para voltar e intensificar seus cuidados emocionais por estarem no limite da saúde psicológica.

Freud já dizia que o homem é feliz quando ama e trabalha (trabalho empregado aqui no sentido de produzir). Na atual fase de resistência, não é uma questão de ser ou não ser feliz que está em pauta. Mas sim, uma garra tribal de cuidar e proteger a si e aos seus. O prazer, a felicidade e o bem estar virão do trabalho que conseguirmos fazer e do amor que nos ajudará a resistir à tentação humana (e legítima) de fraquejar.

Questionamos por muitos anos o imediatismo da sociedade moderna, a dificuldade de pais que trabalham fora não conseguirem frustrar seus filhos. Pois bem: a fase da resistência é a maior experiência de frustração imposta com necessidade do exercício do auto controle. Não há grito ou choro que mude o cenário.

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É inegável que estamos vivendo um evento de enorme impacto de trauma psíquico, daqueles raros na vida, em que se reavalia e muda paradigmas: valores, hábitos e forma de viver. Mas suportar esta etapa de resistência com generosidade e equilíbrio mínimo talvez seja a grande riqueza a ser conquistada. Quem conseguir passar por isso com saúde física e mental, está se habilitando a passar por quase todos os novos desafios da vida.

A frase “eu não aguento mais”, tão repetida por nós em diversas ocasiões ao longo da vida, poderá ser trocada por um empoderamento sobre nossa competência de lidar com o que antes parecia uma dor insuportável.

Elizabeth Carneiro é psicóloga supervisora do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa do Rio, especialista em Psicoterapia Breve e Terapia Familiar Sistêmica, diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química e treinadora oficial pela Universidade do Novo México em Entrevista Motivacional.

 

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